quarta-feira, 5 de novembro de 2014

As Cidades Invisíveis. Italo Calvino. «… chega a Isidora, cidade onde os prédios têm escadas de caracol incrustadas de búzios marinhos, onde se fabricam artísticos óculos e violinos, onde quando o forasteiro está indeciso entre duas mulheres encontra sempre uma terceira»

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As cidades e a memória. 1
«Partindo-se dali e andando três dias para Levante o homem encontra-se em Diomira, cidade com sessenta cúpulas de prata, estátuas de bronze de todos os deuses, ruas pavimentadas a estanho, um teatro de cristal e um galo de ouro que canta no alto de uma torre todas as manhãs. Todas estas belezas o viajante já as conhece por tê-las visto também noutras cidades. Mas a propriedade desta é que quem lá chegar numa noite de Setembro, quando os dias já diminuem e as lâmpadas multicores se acendem todas ao mesmo tempo por cima das portas das lojas de peixe frito, e de um terraço uma voz de mulher grita: uh!, lhe apetece invejar os que agora pensam que já viveram uma noite igual a esta e que então foram felizes.

As cidades e a memória. 2
O homem que cavalga longamente por terrenos bravios sente o desejo de uma cidade. Finalmente chega a Isidora, cidade onde os prédios têm escadas de caracol incrustadas de búzios marinhos, onde se fabricam artísticos óculos e violinos, onde quando o forasteiro está indeciso entre duas mulheres encontra sempre uma terceira, onde as lutas de galos degeneram em brigas sangrentas entre os apostantes. Era em todas estas coisas que ele pensava quando desejava uma cidade. Assim Isidora é a cidade dos seus sonhos: com uma diferença. A vida sonhada continha-o jovem; a Isidora chega em idade tardia. Na praça há o paredão dos velhos que vêem passar a juventude; ele está sentado em fila com eles. Os desejos são já recordações.

As cidades e o desejo. 1
Da cidade de Doroteia pode-se falar de duas maneiras: dizer que se elevam das suas muralhas quatro torres de alumínio ladeando sete portas de ponte levadiça sobre o fosso cuja água alimenta quatro verdes canais que atravessam a cidade e a dividem em nove bairros, cada um deles com trezentas casas e setecentas chaminés; e tendo em conta que as raparigas solteiras de cada bairro se casam com jovens de outros bairros e que as suas famílias trocam os bens que cada uma tem: bergamotas, ovos de esturjão, astrolábios e ametistas, fazer cálculos com base nestes dados até saber tudo o que se deseja da cidade no passado no presente e no futuro; ou dizer como o condutor de camelos que me leva até lá: Cheguei ali muito jovem, uma manhã, muita gente a correr pelas ruas a caminho do mercado, as mulheres tinham belos dentes e olhavam-nos bem nos olhos, três soldados em cima de um palco tocavam cornetim, por toda a parte giravam rodas e ondulavam letreiros coloridos. Até então eu só tinha conhecido o deserto e as pistas das caravanas. Nessa manhã em Doroteia senti que não havia nenhum bem na vida a que eu não pudesse aspirar. Com o passar dos anos os meus olhos voltaram a contemplar as imensidões do deserto e as pistas das caravanas; mas agora sei que este é só um dos muitos caminhos que se abriam à minha frente nessa manhã em Doroteia». In Italo Calvino, As Cidades Invisíveis, 1990, Editorial Teorema, Lisboa, 2003, ISBN 972-695-374-X.

Cortesia de ETeorema/JDACT