quinta-feira, 6 de novembro de 2014

As Cidades Invisíveis. Italo Calvino. «Ai rosa clara algum dia Rosa clara te deixei ai rosa clara algum dia te amarei. Ai amor amores tenho mais de um cento bonecas primores cabeças de vento cabeças de vento não as quero não ai amor amores do meu coração»

jdact e cortesia de sofiaborges

As cidades e os olhos. Y
«(…) Passando o rio a vau, atravessando a passagem, o homem encontra-se de repente diante da cidade de Moriana, com as portas de alabastro transparentes à luz do sol, as colunas de coral que sustêm os frontões incrustados em serpentina, os palácios todos de vidro como aquários onde nadam as sombras das bailarinas de escamas prateadas sob os candelabros em forma de medusa. Se não for a sua primeira viagem o homem sabe já que as cidades como esta têm um reverso: basta percorrer um semicírculo e ter-se-á à vista a face oculta de Moriana, uma extensão de chapa enferrujada, sarapilheira, tábuas cheias de pregos, canos negros de fuligem, montões de latas, muros cobertos com escritas meio apagadas, fundos de cadeira desempalhadas, cordas que só servem para alguém se enforcar numa trave apodrecida. De uma parte à outra a cidade parece que continua em perspectiva multiplicando o seu repertório de imagens: afinal não tem espessura, consiste apenas num direito e num avesso, como uma folha de papel, com uma figura de cá e outra de lá, que não se podem arrancar nem guardar.

As cidades e o nome. X
Clarice, cidade gloriosa, tem uma história atribulada. Várias vezes decaiu e refloresceu, tendo sempre a primeira Clarice como modelo inigualável de todo o esplendor, em comparação com o qual o estado presente da cidade não deixa de suscitar novos suspiros a cada volver das estrelas. Nos séculos de degradação, a cidade, esvaziada das pestilências, baixando de estatura devido aos desmoronamentos de travejamentos e cornijas e aos aluimentos de terras, enferrujada e entupida por incúria ou falta dos responsáveis pela manutenção, repovoava-se lentamente ao reemergirem das caves e tocas hordas de sobreviventes que como ratos pululavam movidos pela ânsia de vasculhar e roer, e até de rebuscar e remendar, como pássaros que fazem ninho. Agarravam-se a tudo o que se pudesse retirar donde estava e pôr noutro lugar para servir para outro uso: os cortinados de brocado acabavam a fazer de lençóis; nas urnas cinerárias de mármore plantavam manjericos; as grelhas de ferro forjado arrancadas das janelas dos gineceus serviam para grelhar carne de gato sobre fogueiras de lenha talhada. Montada com as peças da Clarice imprestável, tomava forma uma Clarice da sobrevivência, toda tugúrios e pardieiros, esgotos infectos, coelheiras. No entanto, do antigo esplendor de Clarice não se perdera quase nada, estava tudo ali, simplesmente disposto numa ordem diferente mas não menos apropriada do que outrora às exigências dos habitantes». In Italo Calvino, As Cidades Invisíveis, 1990, Editorial Teorema, Lisboa, 2003, ISBN 972-695-374-X.


Cortesia de ETeorema/JDACT