quinta-feira, 23 de outubro de 2014

Política, História e Cidadania. Jaime Cortesão. Elisa Neves Travessa «Dois fins essenciais teriam congregado estes homens na concretização desta obra titânica: restituir Portugal à consciência dos seus valores espirituais próprios e promover através de uma série de iniciativas uma acção cultural e educativa…»

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Renascença Portuguesa e a Guerra. O projecto cultural da Renascença Portuguesa. O contributo de Jaime Cortesão. Profeta dessa ideia
«(…) Continuando este percurso pela génese da Renascença devemos recordar as iniciativas que antes da sua criação congregaram alguns dos seus fundadores e contribuíram para a formulação concreta do projecto. Juntos no Porto (1906), Pascoaes, Leonardo Coimbra e Cortesão, por feliz acaso ou prenúncio inspirador, acabam por participar em projectos diversos, que agora podemos considerar como preparatórios da Renascença. É o caso do periódico Nova Silva e do grupo d’Os Amigos do ABC (1908), sedeado no Porto, na Rua da Fábrica, onde se iniciavam, segundo o testemunho de um contemporâneo, os operários no conhecimento das primeiras letras e se tentava formar o cérebro na doutrina anarquista, então familiarmente designada, entre nós, pela palavra Ideia. Cortesão confirma esta acção de educação cívica activa e de vulgarização doutrinária e cultural, lembrando que era intuito desse grupo realizar uma fraterna acção cultural junto das camadas populares. Segundo Veiga Pires, muitos académicos dessa geração integraram este centro de doutrinação e combate que exerceu grande influência cultural e ideológica: aí era lido e comentado Kropotkine como um profeta dos tempos, visionário duma humanidade perfeita.
Um grupo que se inspirava na leitura social dos ideais huguescos, e se empenhou numa acção alternativa à pedagogia do regime. Acção que a Renascença irá efectivar com as publicações, conferências e outras iniciativas de cariz pedagógico, é o caso das Universidades Populares, embora liberta do inicial ímpeto anarquista presente nas primeiras iniciativas. De notar ainda que possuímos poucas referências relativamente aos Amigos do ABC, nomeadamente no que se refere à sua estrutura, composição, programa e funcionamento. O próprio Cortesão solicita, em carta enviada a Álvaro Pinto em 1951, informações sobre a génese da Renascença em que surgem algumas referências ao referido grupo. Não obstante este condicionalismo importa considerar estas iniciativas pelo carácter precursor que assumiram em relação à Renascença.

Concretização do sonho
Na tentativa de perceber como se concretiza o sonho e como o nosso anarquista libertário da juventude transmuda as suas aspirações e ideais para o investimento na construção do grande projecto cívico e cultural, A Renascença, cruzaremos dois documentos essenciais. O primeiro contemporâneo do referido movimento, carta a Raul Proença, a que sumariamente fizemos referência, e o outro, escrito posteriormente, reflexões em torno da Renascença. Separam-nos quarenta anos de uma vida pautada por um combate permanente pela difusão dos ideais democráticos e pela vulgarização histórica, mas une-os a mesma força interior, o mesmo imperativo ético e o mesmo idealismo de um viajante no mundo real, para utilizar uma expressão de Raul Proença. Nas palavras que dirige ao seu contemporâneo, Cortesão considera-se invadido por um proselitismo sagrado que o impelia para a acção, para o desempenho de uma espécie de missão, de apostolado laico, tendo em vista o bem comum e o progresso da humanidade. Numa sociedade em que são os burros que triunfam e portanto a burrice também e em que escasseiam os grandes homens e as grandes ideias, cabia aos intelectuais a missão de desempenharem uma acção cultural e pedagógica que permitisse a criação de um público consciente e ilustrado.
As bases desta nova organização foram lançadas em Coimbra, numa reunião em que participaram, além de Cortesão, Teixeira de Pascoaes, Leonardo Coimbra, Álvaro Pinto e Augusto Casimiro. Os ideais destes intelectuais que se reuniram no Choupal não poderão ser considerados como vãs aspirações. O diagnóstico pessimista do presente pressupunha a inventariação de estratégias para a superação da crise moral e cultural. Dois fins essenciais teriam congregado estes homens na concretização desta obra titânica: restituir Portugal à consciência dos seus valores espirituais próprios e promover através de uma série de iniciativas uma acção cultural e educativa junto de todas as camadas da população. Esta necessidade, vinculada às esperanças de regeneração moral, filia-a Cortesão na geração dos Vencidos da Vida. Filiação que não surge isenta de críticas, sobretudo no diagnóstico excessivamente decadentista e céptico que esses Vencidos fizeram do Portugal finissecular. Foram as suas últimas realizações,  principalmente as de Ramalho Ortigão e Oliveira Martins, que permitiram perceber que havia um programa implícito a realizar, um programa de regeneração retomado, e em certa medida renovado pela Renascença». In Elisa Neves Travessa, Jaime Cortesão, Sinais do Pendsamento Contemporâneo, Ensaio, Política, História e Cidadania, 1884-1940, ASA Editores, Setembro de 2004, obra adquirida e autografada em Fevereiro de 2006, ISBN 972-41-4002-4.

Cortesia de Edições ASA/JDACT