quinta-feira, 30 de outubro de 2014

Perfil Histórico do Século XVII. Vida Mundana de um Frade Virtuoso. Alberto Pimentel. «A philosophia, uma cousa sabia que se inventou para explicar todas as virtudes e todos os vicios da natureza humana, abrange perfeitamente qualquer d’estas modalidades pathologicas de hysterismo conventual»

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De acordo com o original.

O capitão ‘Bonina’
«(…) Costa e Silva, no Ensaio biographico-critico, diz com razão: … qualquer freira divertia-se mais, e gozava de mais liberdade no claustro do que na casa paterna, e por isso as donzellas tinham tão pouca repugnância em tomar o véo. Ninguém se julgava taful de bom tom, sem ter a sua freira, e uma freira não só era uma amante apaixonada, mas uma protectora poderosa, porque per si, ou pelas suas amigas, tudo conseguia, e pedia tudo para aquelle por quem se interessava! Os conventos ardiam em corrupção de galanterias, a que raras almas resistiam. A tentação ia de fora para o interior dos conventos, e vinha do interior dos conventos para fora. Frasqueirinhas a my de França com aguas de cheiro?, escrevia Francisco Manuel a uma religiosa sua parenta. Huy, Senhora!, não faça isso. Mande-me V. M. bons conselhos, e não queira trazer-me á memoria que houve regalos na vida, e que perdi eu os de V. M.
As freiras do século XVII foram por via de regra magníficos exemplares de hysterismo, por ventura principalmente derivado das condições habituaes da existência monástica, e açulado pela licença dos costumes da epocha. Umas espiritualisavam beatificamente os seus amores no vulto intangível de um esposo ideial, Jesus Christo, que as visitava nas cellas e no coro, pertencendo aos physiologistas explicar se n’esses arroubos mysticos o corpo não partilhava da voluptuosidade amorosa do espirito. As chronicas andam cheias d’estes exemplos. Outras pendiam, impellidas por maior violência de temperamento, a uma sensualidade menos espiritual, permitta-se-me a expressão, e procuravam a realidade deleitosa de um amante menos divino do que Jesus. Avulta n’este caso como exemplo a religiosa portugueza, auctora das celebres Cartas, que Luciano Cordeiro acaba de estudar notavelmente, e que se suppõe ter sido soror Marianna Alcoforado, tomando como ponto de partida a revelação lançada, quasi século e meio depois, n’um exemplar do Diccionario de Brunet, pertencente a Boissonade.
A philosophia, uma cousa sabia que se inventou para explicar todas as virtudes e todos os vicios da natureza humana, abrange perfeitamente qualquer d’estas modalidades pathologicas de hysterismo conventual. No primeiro dos casos citados, encosta-se ao hespanhol Molinos, que também no século XVII sustentou a doutrina quietista da absorpção em Deus. No segundo caso, as freiras seiscentistas podiam desculpar-se, á sombra da philosophia, com o pantlieismo idealista de Amaury de Chartres, que floresceu no século XII, segundo o qual as creaturas não são mais do que as formas individuaes da substancia divina, única e una; ou ainda talvez melhor com o pantheismo materialista de David de Dinant, para o qual Deus era a matéria universal, essência de tudo, sempre idêntica, nos homens ou nas cousas. Luciano Cordeiro parece ligar uma grande influência ao quietismo de Molinos na vida conventual do século XVII; mas a philosophia influenciadora das freiras já vinha de muito longe, de David de Dinant por exemplo, ou, mais longe ainda, do pantheismo oriental de Scoto. Ha na Torre do Tombo um manuscripto de que eu pude extrair algumas indicações, interessantes e novas, para reconstruir a vida mundana de António Fonseca Soares. A este manuscripto, que abrange a chronica do convento de Jesus em Setubal começada em 1797 e acabada em 1803, terei de referir-me varias vezes. Escreveu-o uma religiosa d’aquelle convento, soror Anna Maria do Amor Divino, que, com discreta dicacidade, dá noticia da relaxação a que ali havia chegado a vida monástica». In Alberto Pimentel, Vida Mundana de um Frade Virtuoso, Perfil Histórico do Século XVII, PQ9191A65Z18, Livraria António Pereira, Lisboa, 1889.

Cortesia de LPereira/JDACT