quarta-feira, 22 de outubro de 2014

Os Impetuosos. Luísa Leltrão. «As dores chegaram cedo na madrugada. Ela acordara com uma impressão aguda nos rins e então deu-se conta de que era o princípio. Ficara quieta a saboreá-las, ainda ligeiras e espaçadas, vem aí o meu filho. Mas a excitação depressa deu lugar ao terror que lhe acompanhara a gravidez…»

Retrato de Laura Sauvinet, José Malhoa
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Ainda no meio da vida, já estou cansado como se fosse nos confins do seu entardecer. Tenho a cabeça branca e a alma devastada pela fúria de todos os ciclones. In António José de Almeida.

Memórias da tia Graça
«(…) Mas voltando à vida de meus paes, estiveram quatro anos em Coimbra, até meu pae acabar o curso. Ali foram muito felizes. Minha mãe sempre falava com muita saudade dessa epoca e lá tiveram dois filhos, Maria Tereza e Joaquim, o primeiro filho não vingou, com grande desgosto de minha mãe, que nunca se esquecia dele. Sofria horrores com os partos, dificeis e dolorosos, excepto o meu, pois eu era muito pequenina, acho que foi assim toda a vida, nunca dei grandes trabalhos a ninguem. Meu pae, apezar de forte e voluntarioso, não tinha coragem para o sofrimento e chegava a sair de casa até ao nascimento. Não conseguia enfrentar as dores dos outros. E tanto que ele sofreu, coitado! Era generoso, ajudando os pobres, sobretudo os que queriam estudar, pois dava muito valor aos estudos. Minha irmã Maria Tereza foi desde pequenina linda e precoce, encantando toda a gente com a sua graça, fonte de inspiração de varios poetas. Ainda conservo alguns poemas sobre ela, quando tinha uns cinco ou seis anos. Nasceu em Coimbra, assim como meu irmão Joaquim, tambem perfeito e forte. Eu nasci em 1894, na Figueira, no mesmo ano em que meu pae acabou o curso, o conde de Aguim morreu e minha mãe fez as pazes com meu avô Antonio Diogo. Minha mãe sofria muito com os partos, lembro-me de a ouvir contar do seu martirio, ter filhos custa muito, não havemos nós de amar as nossas mães!

As dores chegaram cedo na madrugada. Ela acordara com uma impressão aguda nos rins e então deu-se conta de que era o princípio. Ficara quieta a saboreá-las, ainda ligeiras e espaçadas, vem aí o meu filho. Mas a excitação depressa deu lugar ao terror que lhe acompanhara a gravidez, o terror de que a criança não vingasse, como a outra que morrera porque o seu corpo a expulsara no quinto mês, como excrescência indesejada. Lembrava-se do desgosto que a arrepanhara ao ver de relance aquela coisa sanguinolenta que mais tarde soube ser um rapaz. Chorara tanto por esse filho incompleto e pelos outros que viessem, no medo de que as suas entranhas, misteriosas como um feitiço, apenas fossem capazes de fabricar monstros... O médico, Daniel Mattos, grande amigo de Júlio, assegurara-lhe que não, minha querida Albertina, estas coisas acontecem, a Natureza é sábia, nós é que não sabemos lê-la, a criança não tinha hipóteses, foi melhor assim, o próximo há-de sair bem, sois um casal novo e saudável. O marido dormia na cama ao lado, alheio ao que se passava, ela gostaria de o acordar e procurar nele apoio, mas isto era assunto de mulher, tinha que aguentar sozinha, sofrer os espinhos que o castigo divino lhe destinara, a vida era assim mesmo, pagavam-se preços pela felicidade e ela era feliz desde que há ano e meio se casara. Jamais, nos seus devaneios de menina, sonhara com ventura tão plena, tão alegre, a casa cheia de amigos, de estudantes, de professores; a animação reinava à sua volta, festiva e jovial, tratavam-na como rainha, faziam-lhe confidências de solidões, contavam-lhe episódios burlescos da vida académica e pequenas lembranças encantadoras de que só os estudantes se lembram. Alguns faziam-lhe versos, chamando-lhe musa, mãe-terra e outros nomes surpreendentes e o marido, apesar de ciumento, não se importava porque eles a respeitavam como a uma coisa sagrada; ela adorava conviver, nascera com a vocação de amar e ser amada no meio da espontaneidade risonha que a tornava tão amável.
Conhecera de perto os problemas da política, esse mundo fascinante que lhe fora vedado em solteira - até casar, a existência decorrera-lhe pacata nas aprendizagens da domesticidade, nas leituras, nos bordados, nas obrigações religiosas, nas amigas de colégio cujas conversas giravam em volta de pequenas minúcias femininas, a política era assunto de homens e seu pai sempre velara para que se mantivessem as distâncias. Porém, agora ouvia-os discorrer sobre as novas ideias e os distúrbios ruidosos dos estudantes; os íntimos eram todos bem pensantes, miguelistas, regeneradores, progressistas, mas falavam muito dos republicanos. Acontecia ser condiscípulo de Júlio um dos mais assanhados, Afonso Costa de seu nome, que, de parceria com outros, organizava comícios e bolsava violentos discursos; Albertina soubera de um célebre estudante de Medicina, António José de Almeida, preso pelos insultos ao monarca Carlos I; ela reflectia muito nesses rapazes, que ódio haveria neles para se sujeitarem assim a humilhações públicas, para ofenderem a Deus e ao rei? Gostava muito de ouvir os homens falar, o espírito vivo abria-se-lhe às grandes questões nacionais, que ideia essa de considerar as mulheres umas tontas!... Não que ela quisesse ingerir-se como sempre fazia a sogra, a sogra era especial, nunca vira senhora tão desassombrada e tão firme. Albertina preferia compreender as coisas, como quando, meses atrás, se dera aquela revolução republicana no Porto, com mortes e degredos, se uma mulher não entendesse nada, os acontecimentos invulgares seriam considerados obra do demónio, como dizia sua irmã Elvirinha, uma mulher não devia ser uma ilha, apenas ligada ao continente por seu marido ou por seu pai». In Maria Luísa Beltrão, Os Impetuosos, 1994, Editorial Presença, Lisboa, 1998, ISBN 972-23-1857-8.

Cortesia de EPresença/JDACT