quinta-feira, 30 de outubro de 2014

O Desafio Venturoso. António Barbosa Bacelar. Ana Hatherly. «Dentro do restrito panorama da novela barroca portuguesa, que agora começa aos poucos a ser descoberta, o “Desafio Venturoso” surge como uma narrativa bem urdida e bem trabalhada, que merece um lugar de destaque na ficção portuguesa de todos os tempos»

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(Excerto)
[...] O Desafio Venturoso insere-se no grande grupo da novela curta amatória que, embora de origem italiana, no período barroco tinha já uma arreigada tradição peninsular. Segundo Menendez y Pelayo esse género remontaria a meados do século XV florescendo ao lado das novelas de cavalaria mas diferindo destas consideravelmente, pois na novela erótico-sentimental dá-se mucha más importancia al amor que al esfuerzo, sin que por eso falten en ella lances de armas, bizarrias y gentilezas caballerescas, subordinadas aquella pasion que es alma y vida de la obra, complaciendose los autores en seguir su desarollo ideal y hacer descripción de los afectos de sus personajes. Es, pues, una tentativa de novela intima y no meramente exterior como casi todas las que hasta entonces se habian compuesto. Esta descrição aplica-se com bastante acerto ao Desafio Venturoso, novela curta amatória em que não faltam rasgos cavalheirescos ao lado da anatomia dos sentimentos das personagens. Não sendo propriamente uma narrativa exemplar, o Desafio Venturoso está próximo das novelas cervantinas, exibindo claramente, para lá de vestígios dessa poderosa tendência, aquilo que Evangelina Rodriguez Cuadros definiu como la dolorosa escisión barroca entre lo intelectual y lo sensible.
Considerando o seu argumento, veremos que Felício, amante (que se julga) traído por Lizarda, ao ter conhecimento da dimensão da sua desdita através do relato de Carlos (que ele salva da morte e de quem se torna amigo), acaba por ficar num impasse afectivo, dividido entre as leis do amor e as da amizade, não conseguindo resolver satisfatoriamente o conflito que se gera no seu íntimo. A solução para o problema do triângulo amoroso que se desenha entre Felício, Carlos e Lizarda, é encontrada por um processo frequente em novelas cervantinas, e que consiste na transformação do triângulo conflitual em quadrângulo de equilíbrio, pela adição de mais um elemento feminino (neste caso, Ângela, irmã de Lizarda), terminando a novela com o desejado desfecho feliz através da formação de dois casais.
No Desafio Venturoso é também muito evidente a presença do que Evangelina Rodriguez Cuadros classificou como a dupla articulação do aspecto individual/passional como aspecto de vinculação social, muito nítido no desenho das figuras: veja-se que as acções nobres são praticadas pelos senhores e as acções vis emanam da criada Lucinda. São ainda de destacar os aspectos de amor não-platónico, não-petrarquista, em relação à personagem principal feminina. Esta, por seu turno, fazendo eco dum costume frequente na época, quer nas novelas exemplares quer nas pastoris (em episódios intercalados), assume uma atitude varonil e até de índole criminal, pois Lizarda (se bem que para defender a sua honra) não só apunhala barbaramente Carlos, deixando-o a esvair-se em sangue, como ainda, mais tarde, disfarçada de cavaleiro, brande valorosamente a espada num duelo em que de novo põe em risco a vida do infeliz jovem.
O comportamento vil da criada, fulcro do engano à volta do qual gira toda a acção da novela, é eficazmente contrastado com o gesto impiedoso de Félix, pai de Lizarda, que ameaça matar Lucinda, castigo justificado pelo ultraje feito à sua honra. Porém o autor, que obviamente explora a situação para intensificar o cunho melodramático da narrativa, resolve a questão duma maneira elegante e caridosa, fazendo com que tanto os jovens amantes como o ofendido pai, concedam a Lucinda o seu perdão.
Dotada dum enredo que se deseja intenso e dramático, mas que não exclui os acentos líricos, esta novela em que os sentimentos e os actos estão em íntima consonância com o cenário natural, violento e dramático na serra da Estrela, idílico na serra de Sintra, possui um acentuado sabor romântico, embora datando de cerca de um século antes do próprio pré-romantismo se ter afirmado. Por outro lado, se no Desafio Venturoso há um clima de grande tensão passional, que só no fim da novela se resolve, a linguagem usada é bastante comedida, encontrando-se o empolamento mais na efabulação do que no discurso. De assinalar ainda é a presença de poemas intercalados, em português e em castelhano, segundo o costume da época, de que destacaremos pela sua particular qualidade o Soneto do folio 142v. Dentro do restrito panorama da novela barroca portuguesa, que agora começa aos poucos a ser descoberta, o Desafio Venturoso surge como uma narrativa bem urdida e bem trabalhada, que merece um lugar de destaque na ficção portuguesa de todos os tempos». In Ana Hatherly, O Desafio Venturoso, António Barbosa Bacelar, Lisboa, Assírio Alvim, 1991, Narrativa de Ficção, Memoralismo e Costumes, Prosa Moralista e Humorista, FCG, Século XVII, HALP, 2005, ISSN 1645-5169.

Cortesia de FCG/JDACT