quarta-feira, 1 de outubro de 2014

A Sombra do Templário. Século XIII. Núria Masot. «Sentou-se num banquinho ao lado da cama, a observar a respiração do doente. Ao fim de duas horas, Guils pareceu melhorar. O seu rosto de um cinzento macilento reanimava-se. Um rosa-pálido começou a tingir o rosto bronzeado e a respiração…»

Cortesia de wikipedia

Barcelona
«(…) Entre ambos lá levaram Guils para o quarto do ancião, no primeiro andar da casa. Moshe ofegava com o esforço, mas parecia querer recuperar o fôlego para continuar a discussão. Abraão não lho permitiu, tinha muito trabalho pela frente e, depois de agradecer a ajuda ao amigo, despediu-o sem contemplações. - Agradeço-te, Moshe, mas não quero comprometer-te mais neste assunto. Quanto menos souberes, melhor será para ti. Abraão despiu Guils, que ardia em febre, tapou-o e dirigiu-se à pequena divisão que lhe servia de consultório e de laboratório. Ali preparava os seus medicamentos, possuía uma ampla farmácia cheia de ervas medicinais e de remédios para curar. Tranquilizou-o o aroma intenso e familiar, mas a urgência da situação obrigou-o a apressar-se, desconhecia a natureza do veneno mas guiava-se pelos sintomas que tinha verificado no doente. Teria de experimentar um antídoto geral, que abarcasse grande número de substâncias tóxicas, pois não tinha tempo para grandes estudos. Começou a trabalhar sem deixar de fazer visitas constantes ao doente, de lhe aplicar compressas de salgueiro para a febre e de tentar que engolisse pequenos goles de água. Finalmente encontrou uma fórmula que lhe pareceu adequada e uma vez preparada, começou a ministrá-la lentamente, gota a gota, até considerar que a dose era suficiente. Tinha de agir com prudência, um veneno mata outro veneno, mas também pode acabar com o doente, a dose devia ser exacta, sem margem de erro.
Sentou-se num banquinho ao lado da cama, a observar a respiração do doente. Ao fim de duas horas, Guils pareceu melhorar. O seu rosto de um cinzento macilento reanimava-se. Um rosa-pálido começou a tingir o rosto bronzeado e a respiração deixou de ser ofegante, para adquirir um ritmo mais pausado. Abraão respirou fundo, era bom sinal, mas nunca fiando. Anos de experiência haviam-lhe ensinado que os venenos actuam de forma traiçoeira e inesperada. Em alguns casos, as melhoras significavam apenas o preâmbulo da morte, mas reconheceu que nada mais podia fazer, unicamente esperar e rezar. Afastou o banco para um canto e arrastou a poltrona preferida para o lado de Bernard Guils. O móvel estava velho e meio desengonçado, como ele, mas guardava ainda nos gastos almofadões a forma do seu corpo. Estava exausto, a actividade desenfreada das últimas horas convertia-se numa fadiga imensa, e nem sequer se tinha lembrado de tomar os seus próprios remédios. Pensou que teria tempo de sobra mais tarde; agora precisava de descansar.
Acordou sobressaltado. Um belíssimo cavalo árabe, branco como a neve, fitava-o desafiador. Crina ao vento, patas dianteiras levantadas escouceando no ar, impaciente. Um relincho, como um grito desesperado, atravessou-lhe os tímpanos num pedido desconhecido. Tapou os ouvidos com ambas as mãos, incapaz de suportar aquele som agudo, semiconsciente contudo, estonteado. Precisou de uns segundos para se dar conta de que tudo não tinha passado de um sonho. Adormecera profundamente e a alma abandonara-lhe o corpo viajando para regiões desconhecidas e distantes e de lá alguém lhe mandava uma mensagem que não conseguia decifrar; alguém ou talvez alguma coisa.
Fez um esforço para acordar por completo a fim de observar o doente. Bernard parecia mergulhado num sono tranquilo, as suas feições estavam descontraídas e serenas, alheias a qualquer perigo. A respiração era normal, o silvo rouco dos pulmões havia desaparecido e o peito subia e descia num ritmo pausado. Abraão acalmou-se, ainda era possível recuperá-lo, talvez os remédios salvassem aquela vida e todos os seus conhecimentos, que tanto esforço lhe haviam exigido, servissem para alguma coisa. Tão velho, tantos anos, e contudo sentia-se impotente diante da morte. Recordou a juventude, a aprendizagem, a primeira morte..., afectou-o tanto que esteve quase a abandonar os estudos, a deixar tudo e a voltar para casa a fim de substituir o pai na oficina de joalharia. Mas não o fez e o pai, desiludido com aquele filho que não pretendia continuar a tradição familiar, nunca lhe havia perdoado, recordou abatido». In Núria Masot, A Sombra do Templário, colecção Enigmas da História, Sicidea, 2007, ISBN 978-84-611-4998-8.

Cortesia de Sicidea/JDACT