segunda-feira, 15 de setembro de 2014

Tradução ou Adaptação? Autores Clássicos. A versão de Aquilino Ribeiro. «Enquanto estudante de Filosofia da Sorbonne, inicia o trabalho de tradução de Responsio pro Aristotele, de António Gouveia, com o intuito de apresentar uma tese que revelasse ao mundo a cultura clássica portuguesa»

Cortesia de wikipedia

A tradução de clássicos
«Aquilino Ribeiro publica a sua obra de estreia em 1913. Trata-se de um livro de contos, Jardim das Tormentas, título de clara sugestão anatoliana. Mas antes da estreia oficial, nos anos antecedentes à implantação da República, o jovem Aquilino dedicara-se a traduzir vários autores, sem que se chegasse a saber, muitas das vezes, o verdadeiro nome do tradutor. Isso mesmo nos é confessado no livro de memórias Um Escritor Confessa-se.  O primeiro trabalho remunerado do jovem Aquilino é mesmo uma tradução. A oportunidade fora-lhe proporcionada pela Livraria Bertrand para traduzir Il Santo, obra de Antonio Fogazzaro. O livro suscitara grande alvoroço em Itália, onde o autor era associado às tendências modernistas. Com dicionário e gramática em punho, ajudado pela tradução francesa, verte o romance para Português.
Datam deste período outros trabalhos de tradução, resultantes da proposta, por atacado, da Livraria Tavares Cardoso. Traduziu então autores em voga (entre os quais Tolstoi, Mantegazza, Dubut de Laforest), tarefa que manteve durante um ano e pela qual recebia um salário com regularidade. Dessa forma conseguia meio de sustento e, concomitantemente, firmava o punho na arte de redigir e exercitava o domínio da língua francesa. Lamentava apenas ver mais tarde nos escaparates os livros traduzidos sem que se soubesse quem era o tradutor. Quando se deslocava à aldeia durante um período mais prolongado, aí trabalhava afanosamente nas traduções. Recebia as obras por encomenda e enviava-as pelo correio. Escrevia então com denodado afinco horas a fio. Aquilino tinha nesta altura 20 anos e saíra dois anos antes do seminário de Beja, onde a sua formação humanística lhe permitia ler no original o Latim, Grego, Francês e Espanhol (mais precisamente o Castelhano e o Galego). Embora de menor relevância no conjunto da obra, as versões surgidas nos primórdios da carreira podem fornecer elementos importantes para a conformação de escrita e definição de tendências estilísticas, que só mais tarde viriam a revelar-se na afirmação da carreira de escritor. Por outro lado, como salienta a este propósito Freederik Garcia, a função de tradutor representou muitas vezes substancial investimento estético e emocional, como, de facto, Aquilino dá conta em vários testemunhos.

A tradução de António Gouveia
Em Prol de Aristóteles
As primeiras traduções de vulto surgem durante o exílio, em França, para onde se evadiu em 1908, após fuga da prisão. Chegado a Paris (essa Paris adorável, um pouco mais do que uma sucursal do Paraíso na terra, como a descreve nas primeiras impressões), aí investe, entre 1910 e 1913, na sua formação académica. Nesta altura, poucos colegas da Sorbonne possuíam uma cultura clássica como a do estudante beirão, alicerçada no conhecimento dos idiomas grego e latino. E o desejo de aprofundar estes idiomas surge a pretexto da tradução de dois trabalhos de fôlego, aos quais a crítica tem concedido pouca atenção. Enquanto estudante de Filosofia da Sorbonne, inicia o trabalho de tradução de Responsio pro Aristotele, de António Gouveia, com o intuito de apresentar uma tese que revelasse ao mundo a cultura clássica portuguesa. António Gouveia, ilustre Professor de Humanidades e de Direito (irmão de André de Gouveia e, como ele, humanista de renome), também estudara em França. Mais tarde, já como professor de Humanidades no famoso Colégio de Santa Bárbara, viera à liça defender o Estagirita (em Abóboras no Telhado, Aquilino refere como surgiu a oportunidade de verter este texto para português, evocando o tempo da Sorbonne, onde, em vez de passar o tempo todo na rambóia amável do Quartier Latin, se dedicava às leituras, seleccionada e à tradução; se sobre Aristóteles já havia sido dito o essencial, faltava a tradução integral da Responsio, súmula do debate que Gouveia sustentou com La Ramée, Petrus Ramus. O assunto era mesmo a defesa do Organon, uma espécie de código completo e definitivo do espírito). Além deste opúsculo de 1543, A. Gouveia editou vários textos de clássicos (entre os quais Terêncio, Cícero e Virgílio). Esse trabalho é recuperado por Aquilino trinta anos mais tarde e publicado, em 1940, com o título Em Prol de Aristóteles.

A tradução de Xenofonte
A Retirada dos Dez Mil e O Príncipe Perfeito
Quanto à escolha de Xenofonte, Aquilino afirma por diversas ocasiões o fascínio sentido pelo famoso polígrafo ateniense. Numa forma bem característica de se exprimir, entende que, espraiando olhos por essa espécie de pano de fundo da feira humana (...) que é a História, se procurássemos um homem dos tempos antigos para servir de padrão nos nossos dias talvez não fosse desacertado escolher Xenofonte. Aqui está um tipo às direitas, que não tinha frio nos olhos nem teias de aranha no entendimento. Os critérios adoptados na tradução são definidos no estudo introdutório da obra, começando o tradutor por explicar a razão de ser da adaptação do título. Ao preterir o título original do livro, Anábase, para A Retirada dos Dez Mil, entende ter cometido uma infidelidade. Mas explica porquê:
  • Anábase na sua significação léxica quer dizer marcha para o interior. A avançada estaca, porém, ao fim do livro primeiro, para os seis restantes se ocuparem com o refluxo dos mercenários sobre o ponto de partida. O próprio título original não condiz, por conseguinte, com a extensão do feito militar. Chamaram-lhe certos tradutores Expedição dos Dez Mil mais impropriamente ainda porquanto o exército que Ciro concentrou em Sardes e dirigiu contra seu irmão Artaxerxes compunha-se de cem mil bárbaros e treze mil gregos, que eram entre hoplitas e peltastas as suas tropas de choque. De todos os títulos o que assenta mais plasticamente ao sucesso é retirada, tal como é denominado nos compêndios de história.
Além de questionar o título, o tradutor manifesta a preocupação pela problemática genológica, indagando sobre o seu enquadramento na estrutura convencional dos géneros literários». In Henrique Almeida, Tradução ou Adaptação? A versão de Aquilino Ribeiro de Autores Clássicos, Universidade C. Portuguesa, Viseu, Revista Máthesis nº 15, 2006.

Cortesia de Máthesis/JDACT