domingo, 14 de setembro de 2014

Presente do Mar. Anne M. Lindbergh. «Lembro-me de como ela sempre parecia tão miúda e delicada. Lembro-me de sua inteligência e sensibilidade. Porém, quando releio “Presente do mar”, a ilusão de fragilidade esvai-se, revelando a verdade. Como pude me esquecer?

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«Minha mãe publicou este livro há mais de 50 anos, e sinto-me como se o tivesse lido 50 vezes desde então. Talvez não seja exagero dizer isso. Presente do mar foi publicado quando eu tinha 10 anos, e esta edição está sendo lançada nos meus 60 anos. Coro ao confessar que não tinha lido o livro até chegar à casa dos 20 anos, embora isso seja comum quando se trata de filhos de escritores, sejam eles quem forem. Agora, eu o leio pelo menos uma vez por ano, às vezes duas ou mais. Já li Presente do mar em todas as estações do ano e em todas as épocas da minha vida. Nunca achei que o livro que minha mãe escreveu em 1955 tivesse perdido a novidade, nem a sabedoria contida em suas páginas tivesse deixado de ser aplicável, seja à minha vida ou ao que eu soube, ao longo do tempo, sobre a vida dela. Minha mãe escreveu o livro instalada num pequeno chalé próximo à praia, na ilha Captiva, na costa do golfo da Flórida. Muitas pessoas afirmaram saber qual era o chalé e onde ele se encontra, mas os amigos da Flórida que descobriram o lugar para ela me contaram, há alguns anos, que o chalé já não existia mais.
Ciente disso, recentemente fui passar uma semana em Captiva, levando comigo um exemplar de Presente do mar em que minha mãe tinha escrito uma dedicatória em 1955, dizendo simplesmente: Para Reeve. Não fui em busca do chalé da escritora no litoral do golfo do México, e sim da escritora. Após o seu falecimento e o subsequente processo de inventário, após várias homenagens e eventos relacionados à história pública de nossa família e após inúmeras revelações e discussões a respeito da nossa história privada, fui à procura dela, novamente, em busca de ajuda. Precisava de sua sabedoria e de seu encorajamento, uma vez mais, para seguir adiante. Tal como eu imaginara, ela não frustrou minhas expectativas. Não importa em que página se abra Presente do mar, as palavras da autora oferecem uma oportunidade de respirar, de viver com mais calma. O livro torna possível desacelerar e descansar no presente, sejam quais forem as circunstâncias. Lê-lo, um trecho ou todo o livro, é existir por um momento num tempo diferente e mais sereno.
Até mesmo a cadência e a fluidez da linguagem me parecem fazer referência aos movimentos suaves, inevitáveis do mar. Não sei se minha mãe usou esse estilo intencionalmente ou se foi o resultado natural de estar vivendo à beira da praia, dia após dia, enquanto escrevia o livro. Seja qual for a razão, após algumas poucas páginas eu sempre começo a relaxar de acordo com aquele movimento e a me sentir como algo que pertence à maré, apenas mais um pedaço dos destroços de um naufrágio, flutuando nos maravilhosos ritmos oceânicos do Universo. Isso, em si, é profundamente reconfortante. No entanto, este livro proporciona mais do que paz, mais do que o vaivém ondulante apaziguador de uma vida tranquila e de palavras suaves. Nas entrelinhas de tudo isso há uma força imensa de sustentação. Sempre me surpreendo toda vez que me deparo com essa força a todo vapor em Presente do mar. Tendo a esquecer essa qualidade da minha mãe, ou talvez eu tenha me acostumado a ponto de não percebê-la.
Lembro-me de como ela sempre parecia tão miúda e delicada. Lembro-me de sua inteligência e sensibilidade. Porém, quando releio Presente do mar, a ilusão de fragilidade esvai-se, revelando a verdade. Como pude me esquecer? Ela foi, afinal, uma mulher que criou cinco filhos depois de perder tragicamente o primeiro, em 1932. Foi a primeira mulher nos Estados Unidos a obter um brevê de piloto de planador de primeira classe, em 1930; a primeira mulher a conquistar a Medalha Hubbard da National Geographic Society, em 1934, pelas suas aventuras de aviação e exploração. Ela recebeu ainda o Prémio National Book, em 1938, por Listen the Wind, romance baseado nessas aventuras, e permaneceu uma escritora incluída nas listas de mais vendidos por toda a vida. Esquiou comigo em Vermont aos 65 anos, e fez longas caminhadas nos Alpes suíços aos 70. Cinco anos depois, passou a noite na cratera do vulcão Haleakala com alguns de seus filhos e amigos. Eu me lembro de olhar para cima, para a grande abóbada celeste à noite, reluzente de estrelas, enquanto minha mãe, pisando firme com as suas botas tamanho 35, apontava e identificava para nós o Círculo dos Navegadores: Capela, Castor, Pólux, Prócion e Sírio. Eram as estrelas a partir das quais ela aprendera inicialmente a estabelecer um curso na escuridão, como aviadora pioneira, 50 anos antes. Acima de tudo, Presente do mar apresenta um tipo de liberdade incomum. É difícil reconhecer ou mesmo descrever, porém acredito que essa liberdade é o verdadeiro motivo pelo qual o livro, decorridos tantos anos, continua a ser tão admirado e a ter tantos leitores. Refiro-me à liberdade que advém da escolha de permanecer aberto, tal como fez minha mãe, para a vida em si, não importando o que ela traga: alegrias, tristezas, triunfos, fracassos, sofrimento, aconchego e, certamente, sempre, mudanças». In Anne Morrow Lindbergh, Presente do Mar, Introdução à edição do 50º Aniversário, Reeve Lindbergh, 2005.

Cortesia de Wikipédia/JDACT