quarta-feira, 17 de setembro de 2014

Porque foi Conquistada Ceuta? O arranque dos Descobrimentos. Paulo Jorge Pinto. «Uma das características mais importantes dos Descobrimentos do século XV foi o seu carácter experimental, prático e utilitário. Não é necessário procurar qualquer “Escola de Sagres”…»

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A primazia portuguesa nos Descobrimentos é hoje aceite sem reservas. Sempre foi assim?
«(…) Mais tarde, os Portugueses voltaram a invocar os direitos históricos decorrentes das viagens de Diogo Cão, aquando da disputa colonial sobre o rio Zaire e a região circundante. O século XIX marcou o triunfo do norte da Europa industrializada, sobretudo a Inglaterra, sobre as antigas potências do sul, como Portugal e Espanha, cuja imagem de prosperidade e riqueza estava agora transformada em sinónimo de pobreza e obscurantismo. Era no norte e nos Estados Unidos da América que se encontravam os paradigmas do progresso, da racionalidade e da ciência. Este ambiente mental afectava inevitavelmente o estudo da História. No que toca aos Descobrimentos, espalhou-se a ideia de que o desenvolvimento da ciência náutica, da cartografia ou da construção naval, que permitira aos Portugueses o avanço no Atlântico, tivera certamente origem estrangeira. Um dos casos mais flagrantes deste preconceito envolvia a figura de Martim Behaim (1459-1507), um mercador alemão que viveu em Lisboa e a quem foi atribuída, durante muito tempo, a introdução em Portugal dos conhecimentos teóricos e instrumentos náuticos que permitiram o sucesso das viagens de descobrimento. O célebre geógrafo e naturalista Alexander von Humboldt (1769-1859) concedeu crédito a esta ideia, e o peso da sua autoridade e prestígio contribuiu decisivamente para a sua divulgação. Só no século XX foi possível desmontar os erros e falácias desta e de outras noções, nomeadamente com os trabalhos de Luciano Pereira Silva, Joaquim Bensaúde e Luís de Albuquerque, entre outros. O estudo destas temáticas conheceu um formidável avanço, quer pela publicação de mapas, cartas e outros documentos, quer pelo trabalho de investigação, em bases sólidas e fiáveis, de várias gerações de historiadores, em Portugal e além-fronteiras.
Importa referir, contudo, que, como seria de esperar, também se verificaram erros no sentido oposto, pela mão de autores portugueses: teses e obras a defender ideias de credibilidade duvidosa e sem sustentação documental, meras especulações elevadas à categoria de verdades históricas e destinadas, muitas vezes, apenas a satisfazer o ego nacional e um discutível sentido de patriotismo. Que os Portugueses teriam chegado ao continente americano muito antes de Colombo, que teriam conhecimentos náuticos e cartográficos avançados desde o reinado do rei Dinis I ou que o infante Henrique disporia de informações concretas e actualizadas sobre a Índia, geralmente em articulação com a fantasiosa Escola de Sagres, são apenas alguns exemplos mais conhecidos e que tiveram eco há algumas décadas quando, uma vez mais, a história da presença portuguesa além-mar voltou a servir objectivos políticos e que hoje possuem uma expressão meramente residual.

Como foi feita a aprendizagem da ciência náutica?
Uma das características mais importantes dos Descobrimentos do século XV foi o seu carácter experimental, prático e utilitário. Não é necessário procurar qualquer Escola de Sagres para reconhecer o valor dos navegadores portugueses, muito pelo contrário: a capacidade de encontrar soluções para os problemas que surgiam a cada momento e de adaptar, improvisar e resolver questões concretas apenas aumenta o seu mérito e explica, aliás, o seu sucesso. Apenas uma pequena parte do manancial de conhecimento náutico da Europa medieval era útil na exploração do Atlântico. A tradição mediterrânica, velha de muitos séculos, estava adaptada à navegação costeira, típica de um lago como o Mediterrâneo, mas era insuficiente para navegar em alto-mar, sem vista de terra. Os conhecimentos teóricos já existiam na Europa, como se vê nos tratados medievais de Astronomia; mas faltava introduzi-los e adaptá-los à navegação, com instrumentos adequados às rotinas práticas dos pilotos e dos marinheiros. E porque foram os Portugueses a fazê-lo? Porque foram os primeiros a confrontar-se com os problemas técnicos que o exigiam». In Paulo Jorge Sousa Pinto, Os Portugueses Descobriram a Austrália? Porque foi Conquistada Ceuta? O arranque dos Descobrimentos, A Esfera dos Livros, Lisboa, 2013, ISBN 978-989-626-498-7.

Cortesia de E. dos Livros/JDACT