terça-feira, 30 de setembro de 2014

Philosophari placet sed pavcis. Nair Nazaré Soares. «O legado da cultura grega no mundo romano e o génio da sua reelaboração nos autores latinos, da República ao Império, deixaram marcas indeléveis na cultura ocidental, de que o Humanismo Renascentista é o afloramento mais expressivo»

Cortesia de wikipedia

Philosophari placet, sed pavcis
«O processo da evolução espiritual do homem do Renascimento e as novas experiências culturais e humanas, em que se realiza, participam, de forma intrínseca, da mundividência da Antiguidade Clássica e dos valores ético-políticos que a sustentam. A Idade Média não tinha conhecido a República de Platão: o pensamento do filósofo era divulgado apenas através de compendia. A descoberta da Política de Aristóteles dá-se no século XIII. A obra de Diógenes Laércio, que ilustra todas as escolas filosóficas antigas, é encontrada nos primeiros anos de Quatrocentos. Os humanistas italianos dos alvores do Renascimento abandonam o Aristóteles lógico e físico, símbolo da barbárie estilística medieval, e procuram na filosofia uma finalidade profundamente humana e um conteúdo mais vasto, que pudesse abarcar motivos político-morais e os problemas da vida concreta da sociedade do tempo. Este distanciamento do formalismo escolástico coincide com a reabilitação do neoplatonismo. Ε sem dúvida através do platonismo, configurado com o cristianismo, a ética aristotélica, ou mesmo com a tradição hermética e cabalística, que os conceitos do saber medieval vão ser alvo de renovação, em figuras como Petrarca, Pier Paolo Vergerio, Lorenzo Valla, Marsilio Ficino, Giovanni Pico della Mirandola.
Apesar disso, não há solução de continuidade entre o Humanismo Renascentista e a Época Medieval. Basta considerarmos o período carolíngio e o designado Renascimento dos séculos XII e XIII. No decurso de longos períodos, as ideias evoluem lentamente. Se é impossível encerrar dentro de regras fixas o fervilhar das ideias novas que se defrontam, ou equacionam de forma diferente ou paralela, com o espírito medieval, numerosas são as perspectivas que reflectem uma gradual evolução de pensamento ou uma mera repetição de motivos, de lugares, comuns, transmitidos inconscientemente de autor em autor. O legado da cultura grega no mundo romano e o génio da sua reelaboração nos autores latinos, da República ao Império, que a Patrística assimila, deixaram marcas indeléveis na cultura ocidental, de que o Humanismo Renascentista é o afloramento mais expressivo.
A língua do Lácio, que Lorenzo Valla, nas Elegantiae linguae Latinae, pretende ver dignificada, ao propor um ideal de estilo, capaz de conferir dignidade e beleza ao discurso, assume-se como veículo de comunicação no mundo culto e meio privilegiado de expressão da consciência humanística. A par do latim, o grego e o hebraico tornam-se instrumentos indispensáveis ao conhecimento da Antiguidade e dos textos bíblicos, aos ideais filológicos e exegéticos do movimento humanista. A divulgação do saber clássico tem um apoio inestimável na tradução, a partir do século XV, a que deu grande impulso o papa Nicolau V, fundador da Biblioteca Vaticana. Expressiva é, nesta mesma linha, a produção literária dos nossos príncipes de Avis, que deram a maior importância à tradução dos clássicos em linguajem. Os autores gregos eram agora divulgados em latim pelas traduções de humanistas de renome, em que se destacam as de Leonardo Bruni e Marsilio Ficino. O valor e significado destas traduções na orientação cultural e espiritual do movimento humanista, que se afirmava em Itália, são verdadeiramente notáveis. Basta lembrarmos, por exemplo, a afirmação do neoplatonismo na Academia platónica florentina, que nasceu do conhecimento aprofundado da obra de Platão, que as versões de Marsilio Ficino, feitas sob a égide de Lorenzo de Médicis, propiciaram. Ou o afloramento do averroismo paduano, que teve como suporte as traduções de humanistas, como Leonardo Bruni, à obra de Aristóteles, e conheceu em Pomponazzi, no século XVI, o seu principal defensor. Ou ainda a difusão do neo-estoicismo, favorecida pela versão latina do Manual de Epicteto da autoria de Angelo Poliziano». In Nair de Nazaré Castro Soares, Philosophari placet sed pavcis, Universidade de Coimbra, Revista Hvmanitas, volume L, 1998.

Cortesia de U.Coimbra/JDACT