quarta-feira, 10 de setembro de 2014

Páginas Desconhecidas. A Ditadura de Saldanha. O Golpe Militar de 19 de Maio de 1870. «Dentro deste círculo moral e nesta atmosfera miasmática, que poderá ser um novo partido constitucional? Para ele serão as mesmas exigências duma política de contradição, a que se votará à nascença»

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«(…) Não se suicida, pois, a ditadura. Morre naturalmente de senilidade, duma senilidade, duma senilidade precoce, que se seguiu imediatamente ao nascimento. Obra dum velho, é, como a velhice, impotente e frouxa. Morre de lazeira, nada mais. Que dure uma semana, um mês, isso nada significa. Está moralmente morta. É quanto importa. A questão toda está agora na sucessão do morto. Quem será o herdeiro? Os velhos partidos, naturalmente? Mas os velhos partidos estão julgados e condenados pela opinião, e sobre tudo pelos próprios actos. O que significa qualquer deles no poder, senão a repetição dos mesmos erros, das mesmas tendências e dos mesmos homens? Ora a política é movimento e novidade. Recuar dois anos ou quatro anos atrás não é política: é simples arqueologia. Em Portugal é, sobretudo, paleontologia.
Se os velhos programas foram reprovados, e pateados os velhos homens, será porventura uma solução política levá-los outra vez ao poder? Para quê? Para os reprovar e patear de novo? Em tal caso, fôra então a política um círculo vicioso sem significação, e a História uma sabatina banal e tediosa. Mas a História é movimento e progresso. Assim, pois, a história contemporânea de Portugal, ou se há-de imobilizar, como a da China, ou sair dos velhos partidos, buscando horizontes novos, como convém a um povo que não condescende benevolamente com a morte que o invade.
Um Fonte, um Loulé, um bispo de Viseu, serão sempre, dadas as prisões partidárias que os ligam, a idade que contam, e a incapacidade de renovação intelectual que os caracteriza, serão sempre o mesmo bispo de Viseu, o mesmo Fontes, o mesmo Loulé. Tudo isto está visto e sabido. Não vale a pena recomeçar a Regeneração ou o Movimento de Janeiro. Logo, a crise excede os velhos partidos constitucionais. Vai além do que eles podem e sabem. A política tradicional, reduzida ao absurdo pelos factos, não está à altura das exigências da situação. Mas pergunta-se: não poderão surgir novos partidos dentro do Constitucionalismo? Novos grupos, podem: novos partidos, é impossível. Guerrilhas, certamente: exércitos, de modo algum. E porque não podem?
Porque é exactamente o Constitucionalismo que os torna a eles, a esses velhos partidos, absolutamente impotentes. Porque é a contradição ingénita do sistema que esteriliza e anula os homens. Porque é a organização monárquica, com as suas peias, as suas exigências, as suas despesas, que reduz a nada a inteligência administrativa e a habilidade política da Regeneração, como põe em cheque o patriotismo sincero e a boa vontade popular dos homens de Janeiro. Dentro deste círculo moral e nesta atmosfera miasmática, que poderá ser um novo partido constitucional? Para ele serão as mesmas exigências duma política de contradição, a que se votará à nascença. Encontrará os mesmos prejuízos, que a sua origem o obrigará a respeitar. Será tão incapaz, tão ininteligente e tão corrupto como os seus antecessores». In J. Oliveira Martins, Páginas Desconhecidas, O Golpe Militar de 19 de Maio de 1870 e a Ditadura de Saldanha, Seara Nova 1948, Lisboa.