quarta-feira, 10 de setembro de 2014

Páginas Desconhecidas. A Ditadura de Saldanha. O Golpe Militar de 19 de Maio de 1870. «”Morre, porque se suicida?” Não: nem mesmo se suicida. O suicídio é um acto de energia, que requer força, vontade, qualidades activas, embora mal dirigidas, mas reveladoras de vida»

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«(…) Por gora isto é somente um boato, e nós esperamos ansiosamente saber o que nele há de verdade. Se a emboscada de 19 de Maio desse em resultado o preparar o país para a República, como já deu a mostrar a inanidade do Constitucionalismo, devíamos aplaudi-la. Nós republicanos, devíamos aplaudi-la, porque toda a reforma que permita ao povo dizer o seu voto, toda a reforma que lhe dê autonomia que desoprima, é por nós, e para nós. O que porém nem este, nem nenhum ministério constitucional, conseguirão resolver é a questão da Fazenda.
A série de reformas, que correm como prováveis, em quase nada atenuarão o deficit. O marechal, católico como é, não pode cortar o subsídio ao clero, o marechal não pode suprimir o generalato principesco do nosso magro Exército, o marechal não extinguirá o corpo diplomático, pois que nele vai colocando todos os seus; e não fazendo o ministério isto, não preencherá o deficit, e não preenchendo o deficit, não liquidará a dívida, e não liquidando a dívida, a bancarrota é fatal. A questão da Fazenda é a questão insolúvel, aquela que impede a resolução de todas as outras. E a questão da Fazenda chama-se a questão monárquica. É por isso que nós, desejando ardentemente a realização do programa que corre como do ministério, não confiamos em que o governo saído da empresa de 19 de Maio seja capaz de o realizar». In A República, nº 4, 1870.

«A ditadura, depois de dois meses de inépcia, senão de alguma coisa pior, mostrou a sua impotência, como os governos legais tinham já mostrado a sua também. Que resta, pois? A reforma, farol nominal dos nossos políticos contemporâneos, some-se cada vez mais nas profundidades do horizonte. A reforma, depois de se mostrar impossível dentro da legalidade, mostra-se impossível fora dela. A ditadura está evidentemente morta, e morta dum modo estranho. É uma ditadura, criada pela necessidade de medidas capitais e avançadas, que morre porque, depois de dois meses de poder indisputado e quase absoluto, não encontrou uma única medida com que correspondesse ao seu programa e à situação do país, que, segundo ela, exigia actos radicais.
Foi aceita geralmente sem grande hostilidade, por muitos até com esperança. Hoje ninguém crê nela. Não a acham má, propriamente, mas inútil: não é tirânica, é inepta. Quis ser uma revolução social, e alcançou, apenas um ridículo oficial. Morre, porque se suicida? Não: nem mesmo se suicida. O suicídio é um acto de energia, que requer força, vontade, qualidades activas, embora mal dirigidas, mas reveladoras de vida. Ora, a ditadura não tem actos: tem algumas palavras, e essas vulgares, vagas, insignificantes. Se os decretos dos ditadores foram-se revolucionários em alguma coisa, foi apenas na gramática. Ora isto não basta». In J. Oliveira Martins, Páginas Desconhecidas, O Golpe Militar de 19 de Maio de 1870 e a Ditadura de Saldanha, Seara Nova 1948, Lisboa.