terça-feira, 9 de setembro de 2014

Os Venturosos. Leituras. Alexandre Honrado. «É certo que no palácio o julgavam menos são de espírito: o rei, de pernocas ao léu, num dos jardins do palácio, ainda por cima descalço até à cintura, para levar a bruxaria mais à letra, mergulhando por vezes até às coxas dentro de uma fonte! “Obra!”»

jdact e wikipedia

«(…) - E isto o que vem a ser? - perguntou El-Rei mirando e remirando um frasco e uma banha negra que o enchia. - Creme de túbaros de garanhão. Se o teu problema é o que eu julgo, e é mesmo, esta é a solução indicada. Reticente, muito céptico, El-Rei guardou o frasco com um desvelo infinito apesar do ar de cepticismo, e despediu a bruxa. Deu-lhe à saída metade das moedas que antes previra. - Se ficar bom, mas só depois e então, pagar-te-ei o resto. - Se não me pagares o resto nunca ficarás bom. Pensa nisso e adeusinho, ó rei - respondeu a bruxa, fazendo uma figa com a mão canhota e com a destra erguendo o dedo mínimo e o indicador a tourear descaradamente El-Rei. Ainda levava as mãos em tais posturas quando transpôs a porta principal do palácio, em companhia de Gil. Os soldados da guarda estranharam ver uma freira com tais modos. Só por pouco e porque Gil disse virem mandatados de ordens e incumbidos de tarefas de El-Rei os deixaram sair.
Mal El-Rei se besuntava com o bruxedo, adormecia tão profundamente que nem uivos nem trovões ou ruídos mais sonoros o despertavam. Pelo menos os sonhos. Sim, o monarca dava graças pelos sonhos, pois graças ao unguento da bruxa os pesadelos tinham diminuído, trocados pelos sonhos. Não que agora tivesse sonhos dignificantes, todos seriam melhores do que os habituais e alucinados pesadelos de outrora, lá isso não, que não dignificavam. Atreveu-se a contar um desses novos sonhos, e apenas um já escolhido e pensado, ao seu confessor, frei Nicolau, tido por complacente, farrista e um pouco, na medida da moral que nem cultivava muito, devasso até ao ponto em que o podia ser...
Frei Nicolau, apesar de tudo, ficou escandalizado com esse narrar: - Pois vós sonhais... isso?! O rei não era muito dado a rezas nem a penitências, mas frei Nicolau, desde esse sonho narrado, insistia em que o monarca orasse e se penitenciasse, chegando mesmo a dar-lhe uma corda grossa enodoada com grandes nós, para que com ela batesse nos costados, isto se tais visões, mesmo sonhadas a recato, o assaltassem uma outra vez. A verdade é que El-Rei, guardando a corda numa arca e jamais fazendo uso ou lembrança dela, e ignorando rezas penitentes, andava feliz da vida e ansioso pela hora do deitar e do adormecer em sonhos tão libertos quanto libertinos.
Os habituais pesadelos, sempre cruzados de morte e de sangue e de passado, tinham desaparecido para darem lugar a pequenas orgias oníricas, onde ele tomava grande e activa parte como personagem central e remexida, acordando com um sorriso besta e beato e uma paz incomparáveis. Punha o unguento, deitava-se e sonhava com as mais belas paródias de carne e amor carnal e desnudo, sonhava com coisas que nem em jovem, principalmente depois de ter visto a noiva de seu primo, mais tarde mulher daquele e, quando viúva, sua esposa também, ousara imaginar. Seguia os conselhos da bruxa, portanto. E, portanto, também os banhos de água fresca e corrente que ela recomendara tinham-se tornado seu novo passatempo de todas as tardes.
É certo que no palácio o julgavam menos são de espírito: o rei, de pernocas ao léu, num dos jardins do palácio, ainda por cima descalço até à cintura, para levar a bruxaria mais à letra, mergulhando por vezes até às coxas dentro de uma fonte! Obra! Ah, quem lhe dera ouvir uma única frase de desdém ou de despeito e ele próprio açoitaria de bom grado, pois que lhe agradava à função, o desavergonhado que a proferisse. Se pudesse, corria a escumalha inteira que o rodeava... correria todos a pontapé de tão bom grado...» In Alexandre Honrado, Os Venturosos, Círculo de Leitores, Braga, 2000, ISBN 972-42-2392-2.

Cortesia de CLeitores/JDACT