segunda-feira, 15 de setembro de 2014

Jorge de Melo em Portalegre. O bispo. A história e a Arte. Manuel Inácio Pestana. «Trinta e dois anos aqui viveu o bispo, tempo demasiado longo para uma vida estéril, pacata, imóvel, perfeitamente inconcebível no homem de fibra e de ânimo forte e decidido que nele se adivinha»

jdact e cortesia de postais de Portalegre

«(…) Desses contactos acreditamos que derivassem naturais benefícios para Portalegre, cidade que teve no rei João III o seu verdadeiro rei, a quem tanto ficou a dever, e no bispo Jorge um indubitável e dedicado amigo e servidor. Trinta e dois anos aqui viveu o bispo, tempo demasiado longo para uma vida estéril, pacata, imóvel, perfeitamente inconcebível no homem de fibra e de ânimo forte e decidido que nele se adivinha. Para além de ter cuidado da publicação das Constituições do bispo D. Pedro Gavião e da elaboração dos Estatutos de S. Bernardo de Portalegre, vinte anos lhe sobejaram para acompanhar as obras do convento e do seu precioso monumento funerário. Escasseia documentação que permita conjecturar o que teria sido, de facto, a vida deste homem em Portalegre. Mas bastará atentar na qualidade da obra que nos deixou no domínio das artes para compreendermos que se trata de um espírito culto e iluminado, sentindo e pressentindo a força e a filosofia da época, a Renascença em plena pujança, com o exemplo do rei mecenas a tentar naturalmente também as suas inclinações, ele, a quem a bolsa farta não preocupava. Com os mestres, artistas e peritos ocupados na obra total de S. Bernardo, desde os arquitectos aos decoradores, decerto se entreteria; e quantos não terá ajudado?
Se entendeu por bem fazer em Portalegre tão boa aplicação dos lucros de Alcobaça e se os seus estudos de Paris e de Roma não foram de facto em vão, ele, que já na abadia deixara sinal vivo do gosto e respeito que tinha pelas artes maiores e pelos artistas, deve-se-lhe, p. ex., o enriquecimento em manuelino e reforma do gótico remoto do Mosteiro, também dessa forma serviu a Igreja e serviu os seus próprios gostos. Não foi, porém, com o gótico ou o gótico-manuelino em Portalegre. Foi sim, o Renascimento, ainda que, conforme as palavras de Jorge Rodrigues e Paulo Pereira, nessa construção a teoria da luz revela o escopo do programa arquitectural manuelino ‘e’ as coberturas são nervadas (…) fazendo uso das da ogiva, assim como noutros pormenores que correspondem à primeira campanha das obras se manifeste a influência anterior do gótico final. Jorge, na paz tranquila do pétrio túmulo, contempla aquele sagrado encontro, intencionalmente encomendado, por razões pessoais de fé, de sentimento e de significado, neste caso por se tratar de tema muito do gosto humanístico dos séculos XV e XVI, pela imagem de esposa ideal em oposição à mulher feiticeira, tentadora e pecadora.
Santa Ana era o exemplo representado e ensinado da esposa que assegura a prosperidade material e que respeitava o marido na ausência, enquanto ocupado com os seus negócios, ideal que prosseguiu aceite até ao século XVII. Depois impor-se-á o dogma da Imaculada na figura sagrada da Virgem Maria, sua filha, concebida sem pecado. Este culto de Santa Ana, fortalecido desde os finais da Idade Média, tinha suas raízes nos Evangelhos Apócrifos (ou secretos, significado mais correcto o correntemente atribuído de errados ou não canónicos), dos quais o Protoevangelho de S. Tiago, o Menor, mais ou menos dos anos 150 da era cristã, é o mais antigo dos evangelhos ditos de ficção e o que mais terá influenciado a imaginação dos artistas renascentistas.
A Porta Dourada, ainda hoje existente, só será aberta no fim do Mundo; é um símbolo forte, por isso mesmo escolhida para o encontro dos pais de Maria, reconciliados no desgosto de não terem descendentes, e que ali se juntaram depois do anúncio que a cada um fizera um anjo.  Soube assim, Ana que iria tornar-se, apesar da sua idade avançada, a mãe da Mãe de Jesus Salvador, o que, na verdade, aconteceu nove meses depois, história, mais tarde e sucessivamente, acrescentada em outros e mui variados pormenores, tendo servido de inspiração aos artistas. Estas são razões suficientemente justificadas da utilização de um tema tão complexo e tão carregado de simbolismo, assim como, do mesmo modo, se justifica a presença esculpida de outras figuras do agiológico cristão (S. Simão, Santa Helena, S. Miguel, S. Jorge e os fundadores da Ordem de Cister S. Bento e S. Bernardo) e a exaltação de Nossa Senhora representada em glória na edícula superior do majestoso painel». In Ibn Maruán, Manuel Inácio Pestana, Revista Cultural do Concelho de Marvão, Coordenação de Jorge Oliveira, nº 4, 1994.

Cortesia da CM de Marvão/JDACT