sexta-feira, 5 de setembro de 2014

Diálogo de Civilizações Viagens ao Fundo da História em Busca do Tempo Perdido. Gouveia Monteiro. «… diferentes fases da vida, Áshrama, e aos múltiplos deveres específicos ou svadharma, torna-se claro que este sabor feudal afastava qualquer simpatia pela organização político-social da Índia Antiga»

jdact

Variações sobre uma Ideia de Oriente
«(…) O imperador manchu surgia como o exemplo perfeito da submissão do poder do déspota às leis fundadas no direito e na ordem natural. Por sua vez, o seu édito de tolerância ou édito sagrado em relação ao cristianismo contrastava com o espírito de perseguição e intolerância religiosa que vigorava na Europa. Se somarmos a tudo isto a época de florescimento económico que vigorou na China durante a sua Revolução Industrial, compreendemos a razão de ser do entusiasmo de muitos filósofos das Luzes, pelo Extremo-Oriente. Quando a Revolução Francesa eclode na Europa, nos finais do século XVIII, a China deixa de constituir qualquer padrão de referência no imaginário europeu. A imagem de uma figura parental que conjugava na sua pessoa a autoridade política, moral e religiosa passava a ser vista, pelo contrário, com suspeita. Será, aliás, nesta época que se iniciará o grande fascínio pela Índia, que irá pautar grande parte das crenças do romantismo europeu. Mas a razão deste encantamento é completamente distinta daquela que animou o Século das Luzes, na medida em que a Índia não surgia aos olhos europeus como modelo de governação ou de organização social. Com efeito, o interesse pela Índia era mínimo em termos políticos. O sistema de castas indiano - casta, como se sabe, é uma palavra de origem portuguesa para designar a linhagem familiar ou social, ou de varna (varna, por sua vez, é uma palavra sânscrita que significa fundamentalmente cor, mas também véu), termo com uma conotação racial mais acentuada (embora a cor não se refira tanto à cor da pele, mas sim ao tipo de energia, ou guna, inerente a cada ser humano), retirava qualquer encanto à sociedade indiana. Se somarmos a esta conhecida estratificação social, que se foi tornando cada vez mais rígida ao longo da história indiana, a existência de uma miríade de jatis ou grupos endogâmicos associados a corporações profissionais, assim como às distinções entre as diferentes fases da vida, Áshrama, e aos múltiplos deveres específicos ou svadharma, torna-se claro que este quadro corporativo de sabor feudal afastava qualquer simpatia pela organização político-social da Índia Antiga. Num momento em que as pretensões coloniais inglesas e francesas pelo domínio do subcontinente indiano assumiam a face da evidente rapina, não só a visão ideológica ocidental da sociedade indiana era ilustrada com os piores traços, como se esquecia o facto histórico de a India, como aliás a China, ter iniciado a sua revolução industrial numa época bem anterior à europeia. Recalcava-se igualmente a ambiguidade com que o sistema de castas era vivido na cultura indiana, como se deixa claramente surpreender num tratado do século XI, do célebre viajante e cientista islâmico Alberuni (Al-Biruni), quando este assinala que na visão dominante de Krishna, uma das principais divindades da religião hindu, as distinções de casta e de género são totalmente irrelevantes.
E, no entanto, apesar da visão negra que o Ocidente tinha da sociedade indiana, os europeus apaixonam-se perdidamente pela cultura indiana. A este facto devem-se as traduções francesas de Anquetil-Duperron e inglesas da Sociedade Asiática de Calcutá, criada em 1784, sob a inspiração e mestria de William Jones. O facto de, dois século antes, padres jesuítas portugueses terem traduzido para a língua portuguesa partes significativas de obras centrais da religião hindu não parece ter provocado ecos significativos na cultura europeia. Segundo Donald Lach, o autor da obra monumental Ásia in the Making of Europe (1965), grande parte dos livros foi traduzida em português, em meados do século XVI, e manuscritos com esta tradução encontram-se mais ou menos perdidos tanto em Évora como em Roma. Na verdade, só nos finais do Século das Luzes a Europa se rende à existência de uma literatura prodigiosa, exuberante e especulativa proveniente da distante Índia». In Carlos João Correia, Variações sobre uma Ideia de Oriente, João Gouveia Monteiro, Diálogo de Civilizações, Viagens ao Fundo da História em Busca do Tempo Perdido, Reitoria da Universidade de Coimbra, 2003, Imprensa da Universidade, Coimbra, 2004, ISBN 972-8704-37-2.

Cortesia da Ude Coimbra/JDACT