quarta-feira, 10 de setembro de 2014

Crónica do Rei Pasmado. Gonzalo Torrente Ballester. «O homem pode aceder à mulher com fins de procriação e, se os seus humores lho exigirem, para os acalmar, mas nunca com intenções levianas, como seria a de contemplar nua a própria esposa…»

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«(…) Foi uma gargalhada geral, uma gargalhada sensual e estentórea, provocada pela maneira como cada um dos presentes imaginou o rei contemplando a rainha em pelota: de dia ou de noite, com sol ou à luz das candeias. Saíram a brilhar, de lábios grossos sob bigodes retorcidos, alusões aos quatro pecados do rei com Marfisa e à comentada nega, gracejos subidos de tom e suposições desrespeitosas, até que um cavalheiro esguio, de semblante ascético e olhar dogmático, fez calar os risos com um imperioso cavalheiros, moderem-se, dito em tom tão dramático que, de repente, foi como se o Sol se pusesse. O círculo calou-se e toda a gente olhou para aquele severo enlutado em cuja mão, estendida para o centro da roda, posta sobre o peito a seguir, parecia ter recaído a honra da rainha. Mas não foi dela que se falou quando o silêncio deu lugar à sua palavra, antes disse: - Que espécie de insensatos são Vossas Mercês que assim se regozijam com o que pode trazer-nos calamidades, e as trará de certeza se não se lhe põe remédio? – Ninguém lhe respondeu, a não ser com olhares e rostos surpreendidos, e ele continuou: Não é só o protocolo da corte que se opõe a semelhante disparate, também o impedem as leis de Deus e da Igreja. O homem pode aceder à mulher com fins de procriação e, se os seus humores lho exigirem, para os acalmar, mas nunca com intenções levianas, como seria a de contemplar nua a própria esposa.
Lucrécia, ao ver-se solitária, tinha-se integrado no grupo. - Pois bem olhava o rei para Marfisa nua, quando acordou, este manhã, enquanto ela dormia! O cavalheiro da mão ao peito voltou-se para ela. - Não é a mesma coisa, menina ignorante, olhar para uma prostituta, que para isso serve, ou para a esposa, recebida em santo sacramento, por muito francesa que seja, porque, ainda que as francesas sejam levianas por natureza, ao atravessarem os Pirenéus contaminam-se das nossas virtudes e aceitam os nossos costumes e protocolos. O corpo da esposa é sacrossanto; pode-se tocar-lhe, mas não olhar para ele.
 - Pois há dedos que têm olhos!, respondeu desavergonhadamente Lucrécia; e o cavalheiro da mão ao peito fitou-a com um desprezo tão fulminante que e rapariga, apertando o véu com a mão, saiu a correr da roda e da praça, e se perdeu na calle Mayor, em direcção à Porta del Sol. - Será uma marafona, disse alguém; e outro desconhecido, ainda que de mui bom porte, corroborou: - Uma marafona cuja voz não me é desconhecida! Juraria que é a criada de Marfisa.
Toda e gente se voltou para ele, incluindo o cavalheiro da mão ao peito, e todos pensaram que quem assim conhecia a criada, não deveria desconhecer a ama. E invejaram-no. O cavalheiro distinto cumprimentou e foi-se embora. A roda começou a desfazer-se, uns para aqui, outros para acolá. O clérigo chamado Luís partiu em companhia de dois ou três incondicionais. - E essa décima, Luís, já está concluída? - Esse imbecil da mão ao peito arrebatou-me a inspiração, mas garanto-lhes que a sua conclusão não passará desta noite. Era o que faltava!

A cela que o inquisidor-mor ocupava na casa do Santo Ofício (maldito) não correspondia, nas suas proporções, ao poderio do inquilino, mas sim à sua pessoa: era grande, harmoniosa, de paredes caiadas e vigamento escuro, com móveis enegrecidos pelo tempo, e um quartinho em que o inquisidor-mor escondia o seu catre, que por ter esse nome não era necessariamente incómodo. Por trás da grande mesa guarnecida de veludo, pendia um quadro em que se apresentava Maria Madalena penitente numa gruta; a grande cabeleira incrível deixava ver os resquícios de um corpo dourado; nas outras paredes, dispostos segundo o princípio de simetria mais absoluto, duas séries de pequenos quadros com a vida e as tentações de Santo Antão, equilibrando o conjunto: uma, à direita, de mão flamenga, onde as mulheres nuas eram feias, e a outra, à esquerda, de mão italiana, onde as as mulheres nuas eram belas. O tinteiro, de doze penas, ocupava um canto da mesa, e a braseira, de bronze e couro, tinha sido repuxada por artífices cordoveses, provavelmente mouriscos, mas essas origens duvidosas não inquietavam a consciência do inquisidor-mor, temperada nas tolerâncias da corte romana. No canto do fundo, com a luz da janela vindo da esquerda, estava instalada a camilha, que usava para comer e para aquecer as pernas no Inverno, desenganado da utilidade, meramente decorativa e um tanto imponente, da grande braseira, que avultava no meio da sala e repelia o visitante com a sua imponência». In Gonzalo Torrente Ballester, Crónica del Rey Pasmado, Crónica do Rei Pasmado (Scherzo em re(i) maior alegre, mas não demasiado), Editorial Caminho, 1992, ISBN 972-21-0708-9.

Cortesia da Caminho/JDACT