terça-feira, 30 de setembro de 2014

As Artes de Prometeu. A Poética da Tragédia Sofocliana. Marta Várzeas. «No século do seu florescimento, a especificidade desta nova forma de expressão poética, diferente da Narrativa e da Lírica que até então haviam preenchido o espaço daquilo a que os gregos chamavam “as artes das Musas”»

Cortesia de wikipedia

«(…) Quanto às Musas, um facto bem diverso é de salientar neste contexto. É que é a elas que o autor da Ilíada invoca quando quer encetar uma daquelas longas enumerações a que chamamos catálogos. A mais extensa e importante das quatro é aquela por que se inicia a lista dos contingentes de guerreiros que tinham avançado para Tróia, por isso mesmo conhecido como o Catálogo das Naus: Dizei-me agora, ó Musas habitantes do Olimpo, - pois vós sois deusas, estais presentes e tudo sabeis, ao passo que nós só ouvimos o que diz a fama, e nada vimos - quais os chefes e soberanos dos Dânaos. Poderíamos continuar indefinidamente com exemplos, colhidos através dos tempos, sobre a relação das filhas de Mnemósine com a inspiração do poeta. Agora apenas tentámos demonstrar que somos dos que entendem, ao contrário de Griffith, que muito antes do século V a.C. já a escrita era tida como a fonte da memória, se realmente, como as investigações mais recentes e mais autorizadas parecem indicar, desde a primeira metade do século VIII a.C. ela tinha servido para consignar e estruturar, nas duas longas epopeias fundadoras, uma tradição oral em volta dos heróis da Guerra de Tróia, que atravessara toda a Idade Obscura, desde o colapso da civilização micénica até ao que hoje se apelida de renascimento que marca o começo da Época Arcaica. E com isto voltamos às artes de Prometeu, o herói cultural que tirara os homens da obscuridade em que viviam, no tempo em que olhavam sem ver, ouviam sem escutar, para os erguer ao domínio da natureza e à posse da sabedoria. As artes e as técnicas sucedem-se e, no meio delas, brilham com especial fulgor o número, cúpula do saber e o trabalho criador das Musas. É reconfortante, nestes tempos em que vivemos, este elogio do papel axial das Ciências e das Letras como esteio indestrutível do progresso da Humanidade». In Maria Helena Pereira, As combinações com as Letras, Memória de tudo, Trabalho criador das Musas.

A poética da tragédia sofocliana
«Quando Isócrates, no Panegírico, critica a facilidade com que os atenienses se deixam comover pelas ficções dos poetas, ao passo que se mostram insensíveis perante as desgraças reais em que a Hélade se encontra, refere um dos efeitos que Aristóteles dará como característico da Tragédia, compaixão. A censura pressupõe o reconhecimento da força emocional da Poesia, uma ideia com fundas raízes na tradição grega desde Homero, mas para cuja teorização estética muito contribuiu o surgimento e evolução do teatro trágico no século V em Atenas. Era nele, provavelmente, que Isócrates pensava, ao dizer estas palavras, não só porque a poesia dramática continuou a gozar de um enorme prestígio, dentro e fora de Atenas, ao longo do século IV, muitas vezes com a reposição de peças dos grandes trágicos entretanto desaparecidos; mas também porque, em termos de efeitos emocionais, a tragédia ganhava a palma aos outros géneros literários.
No século do seu florescimento, a especificidade desta nova forma de expressão poética, diferente da Narrativa e da Lírica que até então haviam preenchido o espaço daquilo a que os gregos chamavam as artes das Musas, veio abrir novas vias de reflexão à polémica já antiga acerca do valor da Poesia enquanto discurso didáctico no contexto da pólis. Com o teatro tornava-se possível, se não ultrapassar completamente, pelo menos questionar a validade da aplicação ética da dicotomia verdade / falsidade às apreciações sobre a criação dos poetas que, desde Hesíodo, se instituíra como principal critério para a aferição da melhor poesia. O teatro partia do pressuposto óbvio e assumido de que a representação era isso mesmo, representação, falsidade, portanto. Isso, porém, não significava qualquer demissão dos poetas relativamente ao seu ancestral papel pedagógico na pólis. Nunca a poesia deixou de afirmar o seu valor intrínseco, enquanto saber formativo de um ideal de homem que, como muito bem demonstrou Werner Jaeger, foi sempre o objectivo último da Paideia grega. A comédia As Rãs de Aristófanes, do final do século V, é um eloquente testemunho, ainda que caricatural, de que esse desígnio didáctico, na perspectiva de dois dos maiores representantes do género trágico, Ésquilo e Eurípides, continuava a ser sentido como a verdadeira missão do poeta. E os ataques de Platão à Poesia na República mais não são do que a proposta de substituição desse anterior modelo pedagógico, assente na aprendizagem dos poetas, por um outro, em que a filosofia deveria assumir-se como discurso dominante». In Maria Helena Rocha Pereira, As Artes de Prometeu, As combinações com as Letras, Memória de tudo, Trabalho criador das Musas. In Marta Várzeas, A Poética da Tragédia Sofocliana, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2009, ISBN 978-972-8932-42-8.

Cortesia da FLUPorto/JDACT