terça-feira, 26 de agosto de 2014

Um Inédito de Miguel Baptista Pereira sobre Filosofia Medieval. Mário Carvalho. «Neste campo ele aliás afigurava-se-nos como um herdeiro dos Conimbricenses haja em vista que tal como estes também Pereira citava profusamente, como que em hipertexto, como hoje em dia se diz»

Cortesia de wikipedia

«… fez-nos deparar com um texto inédito dactilografado e assinado pelo punho do próprio Miguel Baptista Pereira (1929-2007) respeitante ao Programa de História da Filosofia Medieval por ele proposto para o ano lectivo de 1971-72. O interesse por essa matéria levou-nos nessa ocasião a fotocopiar o original. Encontrando-se em fase de preparação as Obras Filosóficas Completas de Miguel B. Pereira talvez seja interessante darmos a conhecer o inédito. Certamente que um mero Programa não tem a relevância de uma obra filosófica. Todavia, por um lado, não é muito vulgar evidenciar-se a longa passagem de Baptista Pereira pela docência da Filosofia Medieval, habituados que estamos a lembrá-lo, sobretudo, isto é, talvez só após 1973/74, mais ligado ao ensino da Antropologia Filosófica, área em que sobressaiu como Mestre e como pensador. A verdade porém é que Pereira leccionou História da Filosofia Medieval pelo menos desde 1965/66, regência que manteve, como dissemos, até 1972/73. Antes, quer dizer, a partir de 1958/59 lecciona História da Filosofia em Portugal; em 1960-61: História da Filosofia Antiga, Lógica e Metodologia, Axiologia e Ética (com Luís Reis Santos); em 1961-62: História da Filosofia Antiga, Lógica; e a partir da data lembrada (1965) consagrou-se talvez exclusivamente à Filosofia Medieval, exclusividade rompida no ano lectivo 1973/74 em que passou a abraçar, com a Antropologia, a Ontologia (então unidas), e nesse mesmo ano havendo regido ainda cumulativamente a disciplina de Introdução à Filosofia.
Por outro lado, e na sequência de algum trabalho já realizado, julgamos que, talvezmesmo mais do que (ou pelo menos tanto quanto) a inspecção aos Sumários registados pelos docentes, como contributos para se fazer a história do ensino da Filosofia no centenário da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, se deveria estudar (sempre que isso fosse possível) os Programas gizados pelos protagonistas desses 100 anos. O exame do momento em que um docente universitário pensa um Programa lectivo pode ser eloquente quanto à sua perspectiva filosófica, e esta dimensão não tem sido bem aproveitada até hoje. Ora, Baptista Pereira encontrava-se perfeitamente fadado para o ensino da Filosofia Medieval. Sendo certo que na lista das suas obras não se encontram trabalhos específicos sobre a matéria, a sua dissertação de doutoramento sobretudo testemunha de maneira ímpar o seu invulgar domínio nessa área científica. Neste campo ele aliás afigurava-se-nos como um herdeiro dos Conimbricenses haja em vista que tal como estes também Pereira citava profusamente, como que em hipertexto, como hoje em dia se diz. Mais ainda, em todos os seus artigos, sempre ansiosamente aguardados, recordo, o seu conhecimento ímpar da História da Filosofia nunca soçobrava, antes se agigantava, no momento de sobraçar e sopesar os
temas medievais. Pelo menos em duas ocasiões distintas, tivemos ocasião de nos referirmos ao conhecimento que da Filosofia Medieval detiveram dois mestres portugueses, Vieira Almeida e José Gil, ambos, como Pereira, não se revendo como especialistas na matéria. Ora, neste sector do conhecimento filosófico Miguel Baptista Pereira superou-os a todos. De facto, em Ser e Pessoa, obra publicada quatro anos antes do inédito que ora publicitamos, além dos inúmeros excursus de uma fantástica erudição, poder-se-á considerar o capítulo III, Formas medievais do método filosófico, como um clássico no seu género, mormente no âmbito da literatura em português.
Impressiona depois a plêiade de teólogos e filósofos abordados com precisão e inequívoca actualização, ou melhor: estudos e ponderados, em muitos casos, com particular relevo para Agostinho de Hipona, Alberto Magno, Alberto de Saxónia, Alexandre de Hales, Anselmo de Cantuária, Averróis, Avicena, Boaventura, Boécio, (…) Godofredo de Fontaines, Guilherme de Moerbeke, Guilherme de Ockham, Guilherme de Saint-Thierry, (…) Pedro Abelardo, Pedro Hispano, Pedro Lombardo, Ricardo de Mediavila, Ricardo de São Vítor e Tomás de Aquino, entre muitos mais. Todo este conhecimento, evidentemente, não poderia ser explicado exclusivamente pela passagem do autor pelo seminário católico diocesano em que se instruiu enquanto jovem, antes nos devendo remeter para uma densamente responsável e meditativa prática hermenêutica da Filosofia, qual a que ele mesmo regista, por exemplo, num artigo de 1983, com as seguintes palavras, aliás destinadas a toda a Faculdade de Letras: Estabelecer a comunicação objectiva e crítica com o passado, esclarecer o significado do nosso enraizamento temporal, investigando criticamente os possíveis contextos da nossa referência à tradição, sob pena de ruptura da nossa consciência do mundo e da consequente obnubilação de sentido, são tarefas que especificamente incumbem às ciências humanas praticadas nas Faculdades de Letras». In Mário Santiago Carvalho, Um Inédito de Miguel Baptista Pereira sobre Filosofia Medieval, Revista Filosófica de Coimbra, nº 39, FLUC, Coimbra, 2011.

Cortesia de FLUC/JDACT