quarta-feira, 6 de agosto de 2014

Terra Inquieta. Manuel Faria. «Graças ó Terra que me acolheste no teu manto e me deixaste neste canto desenrolar-me no fio da minha condição numa concordância secreta com o destino do universo de mim só…»

jdact

«Trago hoje pata Ofir um livrinho maravilhoso, de poesia modernista. Leio-o, embevecido, ao cantinho da lareira, longe do bulício tresloucado da cidade dos homens, com a calma interior de um monge beneditino, no limiar escatológico da cidade de Deus. Embrenho-me nesta floresta de lirismo puro, quase paradisíaco, anterior aos cânones da poesia clássica e das formas estereotipadas, obsoletas, da racionalização rígida, rectilínea, das estruturas lexicais. Pressente-se, a cada passo, no fluir divagante da corrente lírica, o arfar de uma alma cristalina, conduzida, sem peias nem escolhos, pelos meandros da Emoção, tal como o primitivismo borbulhar da arte poética. É como se a modernidade da arte fosse o livre regresso dos anseios abissais da alma, sem pontuação, sem métrica, sem rima, ou melhor, com as pausas, os ritmos e os ecos da alma, aos espaços edénicos das origens. Pequenos retalhos do ser, mesclados de miragens de Heraclito e Ésquilo, de Henri Heine e Mao-Tsé-Tung, a gotejarem da clepsidra da história, no microcosmo telúrico da Humanidade. Este livrinho, de pureza helénica, não poluído pela lógica sintáctica, ressumando frescura e beleza em cada suspiro de alma, em cada estrofe livremente concebida, faz-me esquecer, por instantes, as assimetrias escabrosas e insalubres desvios da normal reflexão e sensatez dos homens. Deste florilégio sui géneris, de raro encanto, Pó de Argila Pé de Rosa, da autoria de Maria Adelina Vieira, ao qual já me referi em Crepusculares, apraz-me transcrever esta amostragem, de fervoroso sabor panteísta:

Graças ó Terra que me acolheste no teu manto
e me deixaste neste canto
desenrolar-me no fio da minha condição
numa concordância secreta com o destino
do universo de mim só
numa lenta e insensível adesão
a um espírito
a que o corpo anuirá com a idade
e por ti encontrará a forma superior
de liberdade!

In Manuel O. Faria, Terra Inquieta, APPACDM, Braga, 1994, ISBN 972-8195-10-9.

Cortesia de APPACDM/JDACT