domingo, 31 de agosto de 2014

Teoria e História no 31 (I). A Cultura em Portugal. António José Saraiva. «Era uma ‘ideia’ do território português diferente da que veio a realiza-se: “era um espaço que abrangia o triângulo noroeste da Península até ao Tejo”»

jdact e wikipedia

«(…) Esta primeira época da cultura portuguesa que abrange os primeiros três ou quatro reinados da monarquia é uma época de formação, porque os elementos que a constituem ainda não estão organizados no espaço, não existe ainda um pólo que receba, transforme, elabore e retransmita os movimentos e processos próprios de um meio que no seu conjunto já se distingue dentro do meio ibérico. Em certa medida cabe a esta época a designação de idade heróica, porque é aquela em que a expressão mais popular da comunidade se encontra nos cantos épicos. A idade heróica, diz Menéndez Pidal, é aquela vivida por alguns povos que, antes de terem desenvolvido a prosa historiográfica em língua vulgar, sentem a necessidade de cultivar a sua história, e têm de fazê-lo na única forma literária então existente, em forma poética, em cantos públicos. Só nesta época em Portugal os encontramos. Aliás, esta fase cultural corresponde à da conquista permanente do território, em que o papel mais activo cabe a um bando de conquistadores que avança de norte para sul. Podemos dizer que, do ponto de vista cultural, nesse tempo Portugal é um espaço linguístico. Há uma população que fala o português, que tem chefes naturais, no seio da qual já aparecem textos em português, população que tem a sua tradição poética oral e musical na sua língua própria. Neste espaço encontramos pequenos focos de saber clerical, baseado na escrita e no livro. Mas são franjas de um centro cosmopolita, situado fora de Portugal: pertencem na realidade mais à história da Igreja do que à história nacional. Basta pensar que não cabem no nosso espaço as duas principais personalidades que aqui se formaram, Santo António, dito de Pádua e que nós chamamos de Lisboa, atendendo ao seu lugar de nascimento, e o Papa João XXI, mais conhecido por Pedro Hispano, antigo abade de Vermoim. E, quanto à produção poética autóctone, pertence sem dúvida ao espaço linguístico nacional, mas o que sabemos dos centros donde irradiou leva-nos para fora dos limites geográficos e cronológicos do reino de Portugal. O espaço linguístico de que falamos nem sequer constituía uma entidade política. Abrangia a actual Galiza, todo o Norte de Portugal, que constituía o território portucalense, e o chamado território de Coimbra, ou conimbricense, cujo limite sul era o Mondego. A Estremadura, entre o Mondego e o Tejo, era um território ermo e assolado pela guerra. Quanto a Sintra, Lisboa, ninho de piratas, e sobretudo Santarém, cidade muito importante, eram, no fim do reinado do Fundador, povoações de conquista recente, ainda fortemente arabizadas; todo o Alentejo era teatro de guerra, embora Évora, conquistada por um caudilho mouro aliado de Afonso Henriques, tivesse permanecido constantemente em mãos cristãs, no meio dos fluxos e refluxos da chamada Reconquista. Para leste, a fronteira não estava bem determinada e menos ainda povoada. Afonso Henriques pretendeu alargar o território não só para a Galiza, que chegou a ocupar parcialmente durante algum tempo, mas também para Zamora, Toro, Salamanca, Valladolid, Cáceres, Badajoz, regiões onde não se falava ainda o castelhano, mas dialectos leoneses ou moçárabes, com características próximas do galego-português. Era uma ideia do território português diferente da que veio a realiza-se: era um espaço que abrangia o triângulo noroeste da Península até ao Tejo. Fora já a ideia do conde Henrique e de D. Teresa. A resistência oferecida pelos reis de Leão e de Castela obrigou todavia os chefes portugueses a canalizarem o seu expansionismo para o Sul, tanto mais que as estradas romanas lhes facilitavam o caminho nesse sentido». In António José Saraiva, A Cultura em Portugal, Gradiva, Lisboa, 1991.

Cortesia Gradiva/JDACT