terça-feira, 26 de agosto de 2014

Piano. Concerto. Poesia de Ramos Rosa. «… o chefe apanhou-me com o olho lírico na gaiola do quintal em frente e debitou-me na minha conta de empregado. (…) Porque não me sinto orgulhoso de ter cumprido o meu dever? Porque me sinto irremediavelmente perdido no meu cansaço?»

jdact e wikipedia


«A noite trocou-me os sonhos e as mãos
dispersou-me os amigos
tenho o coração confundido e a rua é estreita
estreita em cada passo
as casas engolem-nos
sumimo-nos
estou num quarto só num quarto só
com os sonhos trocados
com toda a vida às avessas a arder num quarto só.

Sou um funcionário apagado
um funcionário triste
a minha alma não acompanha a minha mão.
Débito e crédito, débito e crédito
a minha alma não dança com os números
tento escondê-la envergonhado
o chefe apanhou-me com o olho lírico na gaiola do
quintal em frente
e debitou-me na minha conta de empregado.
Sou um funcionário cansado dum dia exemplar.
Porque não me sinto orgulhoso de ter cumprido o meu dever?
Porque me sinto irremediavelmente perdido no meu cansaço?

Soletro velhas palavras generosas.
Flor rapariga amigo menino
irmão beijo namorada
mãe estrela música.
São as palavas cruzadas do meu sonho
palavras soterradas na prisão da minha vida.
Isso todas as noites do mundo uma noite só comprida
num quarto só».


JDACT