domingo, 10 de agosto de 2014

O Sentimento de Si. António Damásio. «… a compreensão da biologia da consciência transforma-se na questão de descobrir como é que o cérebro consegue cartografar "ambos" os actores e a relação que estes mantêm. O problema geral da representação do objecto não é particularmente enigmático»

Cortesia de wikipedia

Em busca do Si
«De que modo vimos a saber que estamos a ver um determinado objecto? Como é que nos tornamos conscientes no sentido completo da palavra? Como é que o sentido de si no acto de conhecimento se implanta na mente? O caminho para uma possível resposta a estas perguntas só se tornou claro após eu ter começado a encarar o problema da consciência em função de dois actores principais, o organismo e o objecto, e em função da relação mantida por estes actores ao longo das suas interacções naturais. O organismo em questão é aquele dentro do qual acontece a consciência; o objecto, em questão é qualquer um que se dê a conhecer no processo da consciência; e as relações entre organismo e objecto constituem o conteúdo do conhecimento a que chamamos consciência. Vista nesta perspectiva, a consciência consiste na construção do conhecimento sobre dois factos: que o organismo está envolvido numa relação com um objecto e que o objecto presente nessa relação provoca uma modificação no organismo. Esta nova perspectiva também transforma a realização biológica da consciência num problema tratável. O processo da construção do conhecimento requer um cérebro e requer as propriedades de sinalização através das quais os cérebros conseguem construir padrões neurais e formar imagens.
Os padrões e as imagens necessários ao aparecimento da consciência são nem mais nem menos que os deputados cerebrais do organismo, do objecto, e da relação entre os dois. Nesta perspectiva, a compreensão da biologia da consciência transforma-se na questão de descobrir como é que o cérebro consegue cartografar ambos os actores e a relação que estes mantêm. O problema geral da representação do objecto não é particularmente enigmático. O aturado estudo da percepção, da aprendizagem, da memória e da linguagem deu-nos uma ideia considerável do modo como o cérebro processa um objecto, em termos sensoriais e motores, e uma ideia de como o conhecimento de um objecto pode ser guardado na memória, classificado em termos conceptuais ou linguísticos, e recuperado na recordação ou no reconhecimento. Os pormenores neurofisiológicos destes processos ainda não foram completamente resolvidos, mas os contornos destes problemas são compreensíveis. Do meu ponto de vista, a neurociência tem vindo a dedicar a maior parte dos seus esforços à compreensão da base neural daquilo que vejo como o deputado do objecto. No jogo de relações da consciência, o objecto é mostrado sob a forma de padrões neurais, nos córtices sensoriais apropriados para cartografar as suas características. Por exemplo, no caso dos aspectos visuais de um objecto, os padrões neurais são construídos numa diversidade de regiões dos córtices visuais, não apenas numa ou duas mas em muitas, que trabalham concertadamente para cartografar os vários aspectos do objecto em termos visuais. Porém, do ponto de vista do organismo, as questões são bem diferentes. Para mostrar quão diferentes elas são, vou sugerir ao leitor um exercício.
Levante os olhos desta página e dirija-os para a sala e para as coisas que estão à sua frente, observe-as com atenção e regresse depois à página do livro. Quando levantou os olhos, as várias estações do seu sistema visual, desde as retinas até às diversas regiões do córtex cerebral, deixaram rapidamente de seguir estas palavras para cartografarem a sala que se encontra à sua frente. Quando regressou ao livro, todas essas regiões voltaram mais uma vez a cartografar a página. Agora, dê uma volta de cento e oitenta graus e olhe para o que está atrás de si. Mais uma vez a cartografia da página desaparece de repente para que o sistema visual possa representar a nova cena que está a contemplar. Moral da história: numa sucessão rápida, precisamente as mesmas regiões do cérebro construíram mapas completamente diferentes devido às diferentes disposições motoras que o organismo assumiu e às diversas informações sensoriais colhidas pelo organismo». In António Damásio, O Sentimento de Si, O corpo, a emoção e a neurobiologia da consciência, Publicações Europa-América, 1999, 2004, ISBN 972-1-04757-0.

Cortesia de PEA/JDACT