quinta-feira, 28 de agosto de 2014

O Mistério das Catedrais. Interpretação Esotérica dos símbolos herméticos. Fulcanelli. «… maior do que tudo isso, o simples e severo canto gregoriano, talvez o único canto verdadeiro, só por acréscimo dizem algo mais do que as emoções causadas pela catedral em si própria»

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«A mais forte impressão da nossa primeira juventude, tínhamos então sete anos, de que guardamos ainda uma viva recordação, foi a emoção que provocou na nossa alma de criança a visão de uma catedral gótica. Sentimo-nos imediatamente transportado, extasiado, preso de admiração, incapaz de nos furtarmos à atracção do maravilhoso, à magia do esplêndido, do imenso, do vertiginoso que se desprendia dessa obra mais divina que humana. Desde então, a visão transformou-se mas a impressão permanece. E se o hábito modificou o carácter impulsivo e patético do primeiro contacto, nunca nos pudemos defender de uma espécie de arrebatamento perante esses belos livros de imagens erguidos sobre os nossos adros e que estendem até ao céu as suas folhas de pedra esculpida. Com que linguagem, por que meios poderíamos exprimir-lhes a nossa admiração, testemunhar-lhes o nosso reconhecimento, todos os sentimentos de gratidão de que o nosso coração está cheio por tudo o que nos ensinaram a apreciar, a reconhecer, a descobrir, até essas obras-primas mudas, esses mestres sem palavras e sem voz?
Sem palavras e sem voz?, que dizemos! Se estes livros lapidares têm as suas letras esculpidas, frases em baixos-relevos e pensamentos em ogivas, não falam menos pelo espírito imorredoiro que se exala das suas páginas. Mais claros do que os seus irmãos mais novos, manuscritos e impressos, possuem sobre eles a vantagem de traduzir apenas um sentido único, absoluto, de expressão simples, de interpretação ingénua e pitoresca, um sentido purificado das subtilezas, das alusões, dos equívocos literários. A língua de pedras que esta arte nova fala, diz com muita verdade Colfs, é simultaneamente clara e sublime. E tanto fala à alma dos mais humildes como dos mais cultos. Que língua patética, o gótico das pedras! Uma língua tão patética, com efeito, que os cânticos de um Orlande de Lassus ou de um Palestrina, as obras para órgão de um Haendel ou de um Frescobaldi, a orquestração de um Beethoven ou de um Cherubini e, maior do que tudo isso, o simples e severo canto gregoriano, talvez o único canto verdadeiro, só por acréscimo dizem algo mais do que as emoções causadas pela catedral em si própria. Ai daqueles que não amam a arquitectura gótica ou, pelo menos, lamentemo-los como deserdados do coração.
Santuário da Tradição, da Ciência e da Arte, a catedral gótica não deve ser olhada como uma obra unicamente dedicada à glória do cristianismo, mas antes como uma vasta condenação de ideias, de tendências, de fé populares, um todo perfeito ao qual nos podemos referir sem receio desde que se trate de penetrar o pensamento dos ancestrais, seja qual for o domínio: religioso, laico, filosófico ou social. As abóbadas ousadas, a nobreza das naves, a amplidão das proporções e a beleza da execução fazem da catedral uma obra original, de harmonia incomparável, mas que o exercício do culto não parece dever ocupar por inteiro. Se o recolhimento sob a luz espectral e policroma dos altos vitrais, se o silêncio convida à oração, predispõem para a meditação, em compensação o aparelho, a estrutura, a ornamentação, desprendem e reflectem, no seu extraordinário poder, sensações menos edificantes, um espírito mais laico e, digamos a palavra, quase pagão. Podem aí descobrir-se, além da inspiração ardente nascida de uma fé robusta, as mil preocupações de grande alma popular, a afirmação da sua consciência, da sua vontade própria, a imagem do seu pensamento no que ela tem de complexo, de abstracto, de essencial, de soberano.
Se há quem entre no edifício para assistir aos ofícios divinos, se há quem penetre nele acompanhando cortejos fúnebres ou os alegres cortejos das festas anunciadas pelo repicar de sinos, também há quem se reúna dentro delas noutras circunstâncias. Realizam-se assembleias políticas sob a presidência do bispo; discute-se o preço do trigo ou do gado; os mercadores de panos fixam ai a cotação dos seus produtos; acorre-se a esse lugar para pedir reconforto, solicitar conselho, implorar perdão. E não há corporação que não faça benzer lá a obra-prima do seu novo companheiro e que não se reúna uma vez por ano sob a protecção do santo padroeiro». In Fulcanelli, 1926, Le Mystère des Cathédrales, 1964, O Mistério das Catedrais, Interpretação Esotérica dos símbolos herméticos, Edições 70, colecção Esfinge, 1975.

Cortesia E70/JDACT