quinta-feira, 7 de agosto de 2014

A Estória Jogralesca de Afonso Henriques. António J. Saraiva. «No desfile viu um cónego ‘que era negro’. Interpelou-o e fez-lhe um breve exame. Chamava-se ‘Martinho’, filho de Soleima. Esse foi o escolhido, mas, como tivesse escrúpulos em aceitar, o rei ameaçou-o de lhe cortar a cabeça…»

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O que são a Terceira e Quarta Crónicas breves de Santa Cruz
«(…) Antes de morrer, em Astorga, o conde Henrique faz uma longa fala a seu filho Afonso sobre as obrigações de um príncipe quanto ao património, aos cavaleiros e aos concelhos. Constitui-o herdeiro da sua terra e do seu valor pessoal e manda chamar os seus vassalos de Astorga para que prestem menagem ao filho como seu sucessor: recomenda a Afonso Henriques que não se afaste da cidade para não perder a terra de Leão. Afonso Henriques, depois de consultar os vassalos, decide ir a Braga ao enterro do pai. Os Leoneses aproveitam a sua ausência para se revoltarem, e Afonso Henriques perde as suas terras de Leão. Retira a vassalagem que deve a Afonso VII, imperador de Leão e Castela, e refugia-se em Portugal. (Neste ponto a estória é pouco clara: deve supor-se que Afonso VII e Afonso Henriques entraram em conflito porque aquele o expulsou da terra leonesa que este herdara do conde) Mas a terra de Portugal não obedecia a Afonso Henriques, porque tomara o partido de sua mãe, D. Teresa, e do conde Fernando Peres Trava. Afonso Henriques apodera-se dos castelos da Feira e de Neiva e a partir deles começa a fazer guerra a D. Teresa.
O conde Fernando propõe a Afonso Henriques uma batalha para resolver de uma vez a questão. Nesta ocasião encontram-se os três, e D. Teresa e seu filho discutem acaloradamente os respectivos direitos à herança de Portugal, mas não chegam a acordo. Encontram-se as tropas em Guimarães. D. Teresa exorta o marido, em palavras exaltadas, a prender o filho. Este foi derrotado, fugiu, e na sua fuga encontrou o seu aio, Soeiro Mendes, que o vinha ajudar na batalha. Soeiro Mendes convenceu o pupilo a voltar ao combate e prometeu-lhe a vitória. Assim acontece, e Afonso Henriques, vencedor, prende a mãe com ferros nos pés. Ela lança contra ele uma maldição: que as suas pernas venham a ser quebradas com ferros. E mandou pedir ajuda ao imperador, oferecendo- lhe a terra de Portugal se a libertasse. Vem o imperador com grande poder: os Portugueses juntam-se a Afonso Henriques, que sai vencedor em Valdevez. O imperador foge para Sevilha e deixa sete condes e muitos cavaleiros nas mãos dos portugueses. Aqui intercala-se uma notícia breve da batalha de Ourique, a qual não se refere ao milagre do aparecimento de Cristo mas sim à proclamação de Afonso Henriques como rei, no campo de batalha. Fechado este parêntesis, encontramos outro cenário. Conta o narrador que o papa veio a saber que Afonso Henriques trazia consigo sua mãe presa, e mandou-lhe dizer pelo bispo de Coimbra que a soltasse, sob pena de excomunhão. Afonso Henriques recusa terminantemente; o bispo excomungou a cidade e fugiu de noite. Afonso Henriques reuniu os cónegos da Sé e ordenou-lhes que designassem um novo bispo. Eles argumentaram que tinham bispo e por isso não podiam nomear outro. Afonso Henriques mandou-os desfilar diante de si para ele próprio escolher o novo bispo. No desfile viu um cónego que era negro. Interpelou-o e fez-lhe um breve exame. Chamava-se Martinho, filho de Soleima. Esse foi o escolhido, mas, como tivesse escrúpulos em aceitar, o rei ameaçou-o de lhe cortar a cabeça; e o clérigo cantou missa. Foi isto sabido em Roma, e consideraram que o rei era herege. O papa despachou um cardeal para lhe ensinar a Fé. Informado da vinda do cardeal, o rei declarou que não se arrependia, e que lhe cortaria o braço pelo cotovelo se lhe desse a mão a beijar. O cardeal chegou a Coimbra, ficou assustado com as notícias e foi visitar o rei no alcácer. Segue-se um diálogo em que o cardeal diz ao que vem; o rei responde que não precisa que lhe ensinem a Fé, pois tão bons .livros há em Coimbra como em Roma. Só precisa de que Roma o ajude na sua guerra contra os Mouros.
Ficou aprazada uma entrevista para o dia seguinte, mas ao cantar do galo o cardeal convocou os clérigos, excomungou a cidade e partiu. O rei soube-o na manhã seguinte; seguiu imediatamente no seu encalce e alcançou-o quando o cardeal já ia a duas léguas da cidade, em Santa Maria da Vimieira. O rei levantou a espada para cortar a cabeça ao cardeal, mas suspendeu-se quando quatro cavaleiros que vinham atrás dele lhe gritaram que não o fizesse porque seria de todo em todo considerado herege em Roma. Então o rei despoja o cardeal das riquezas que levava e só lhe deixa três cavalgaduras para seguir viagem. Obriga-o a prometer que lhe enviará de Roma no prazo de quatro meses uma carta do papa prometendo que Portugal não será excomungado enquanto ele for vivo, deixando um sobrinho como refém. A carta de isenção chegou dentro do prazo e daí em diante o rei foi bispo e arcebispo e ninguém mandou nele». In António José Saraiva, A Cultura de Portugal, Teoria e História, Gradiva, Lisboa, 1991, 2007, ISBN 978-972-662-190-4.

Cortesia de Gradiva/JDACT