domingo, 20 de julho de 2014

Um Retrato Italiano de Portugal no Século XVI. Carmen Radulet. «Fazendo recurso a este artifício retórico o anónimo florentino, elimina qualquer responsabilidade própria de carácter moral e informativo, não só porque atribui as duas partes do texto a dois autores diferentes da sua pessoa…»

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«(…) Ao lado de um esforço de descrição de tipo global da Península, em que predomina uma tradição medieval e/ou humanista, surgem obras que têm como objectivo declarado uma apresentação e uma análise do território nacional, regional ou até local elaboradas em moldes mais concretos e, consequentemente, menos condicionadas pela retórica presente nos tratados de cunho tradicional. Os exemplos são numerosos e portanto, limitar-nos-emos a recordar só alguns dos mais significativos: o Tratado sobre a província d’antre Douro e Minho, do Mestre António, a Geographia d’antre Douro e Minho e Trás-os-Montes, de João de Barros, o Sumário em que brevemente se contem algumas couses (assim eclesiasticas como seculares) que há na cidade de Lisboa, de Cristóvão Rodrigues Oliveira, o Tratado da magestade e grandeza e abastança da cidade de Lisboa, de João Brandão, a História e antiguidade da cidade de Évora, de André de Resende ou a Urbis Olisiponis descriptio de Damião de Góis.
Além da ordem cronológica, não é casual o facto que citamos como último exemplo exactamente a Urbis Olisiponis descriptio de Damião de Gois já que esta obra assume no contexto que nos interessa um significado privilegiado, como aliás salientou Serrão:
  • AUrbis Olisiponis descriptio pode considerar-se um grande festival de erudição antiga e de história portuguesa. Citam-se Plínio, Xenofonte, Cornélio Nepos, Pomponio Mela, entre outros, ao lado dos lusitanos Santo António, André de Resende, Fernando Álvares e Brás Albuquerque. Para fundar a origem do topónimo Olisipo ou Ullissea, o autor invoca os nomes de Ptolomeu, Terêncio, Estrabão e Justino e discute as respectivas teses. Em todo o opúsculo não se vislumbra uma ordem temática, misturando-se a história, a geografia, a religião, as tradições e os dados concretos numa colorida simbiose de que a cidade emerge, tanto nas raízes do seu passado como na sua integração, desde o século XII, no corpo nacional português. O opúsculo é, na verdade, uma fonte histórica, mas com o devido respeito também uma peça literária.
O mesmo ilustre investigador vincava também o facto que este texto de Damião de Góis é uma obra eminentemente literária, nos moldes da evocação de certas terras e lugares, como a concebiam os humanistas ao elevar as raízes longínquas e as grandezas do presente. É nesta linha que se insere também o Ritratto et Riverso del Regno de Portogallo, apesar de o autor, ainda anónimo, perseguir um programa não só filosófico mas também formal, algo diferente do cumprido por Damião de Góis na Urbis Olisiponis descriptio. O objectivo do autor italiano não é o de tratar um itinerário através de uma determinada região, reconstruindo a história antiga e moderna daqueles lugares, mas o de facultar aos leitores italianos que não conheciam a realidade portuguesa um tratado descritivo do Reino de Portugal, assim como este se apresentava num momento bem definido da sua evolução histórica, social e administrativa. No acto de introduzir a segunda parte do seu tratado, o autor oferece também uma primeira indicação acerca do género em que se coloca a sua obra: O retrato deste reino de Portugal, que V.S. me mandou, li-o com aquela avidez e com aquele gosto com que se lêem as coisas belas e mui desejadas. Todavia, segundo algumas outras informações que tenho, pareceu-me ver sobretudo muito engenho e muita eloquência, mais do que o completo relato daquele reino. Não por que as coisas que escreveis não sejam verdadeiras, antes as tenho por mui verdadeiras, mas por que julgo haver muitas (talvez não tão louváveis) de que não fazeis menção alguma.
O retrato é portanto atribuído a um autor cuja qualificação e especialização ficam desconhecidas, apesar de se tratar de uma pessoa que possuía muito engenho e muita eloquência. A resposta-complementa, isto é o reverso com base num artificio retórico, representaria um texto redigido por motivos contingentes e fortuitos já que, como vinca o autor: ao tempo que recebi a vossa [obra], estavam aqui comigo dois nobres italianos, práticos das coisas do mundo, um dos quais tinha residido muito tempo naquela Corte. O gentil-homem ao qual foi pedida a opinião sobre aquela descrição do Reino de Portugal, teria notado que se tratava de um verdadeiro retrato e que, consequentemente, os retratos necessitam de um reverso: ele declarava-se, portanto disponível a redigir o reverso daquele retrato para que em tudo fosse perfeito. Fazendo recurso a este artifício retórico o anónimo florentino, elimina qualquer responsabilidade própria de carácter moral e informativo, não só porque atribui as duas partes do texto a dois autores diferentes da sua pessoa, mas também porque, no mesmo momento em que declara que se trata de um retrato e de um reverso, justifica também certas escolhas formais e de conteúdo. Depreende-se assim, claramente, que a obra respeita uma bem definida retórica, baseada no jogo dos contrastes e das contraposições e que, portanto os materiais informativos e a realidade apresentada sofrem uma determinada transfiguração literária ditada pelo próprio género». In Carmen Radulet, Um Retrato Italiano de Portugal no Século XVI, a Joaquim Veríssimo Serrão os Amigos, Fraternidade e Abnegação, Academia Portuguesa da História, Lisboa, 1999, ISBN 972-624-126-X.

Cortesia da APdaHistória/JDACT