terça-feira, 15 de julho de 2014

Tópicos sobre a Prática Política dos Estudantes Republicanos (1890-1931). Limites e Condicionantes do Movimento Estudantil. Ana Caiado Boavida. «… a coisa não está para brincadeiras... E os rapazes sentem que, se não defenderem com cuidado a lancha, arriscam-se a ter de nadar. Uma agonia de classe que ingenuamente se amarra a princípios de reacção»

Cortesia de wikipedia

«(…) É tempo, talvez, de nos questionarmos sobre a real dimensão e projecção de todos estes grupos saídos dessa vaga e abstracta mocidade das escolas para quem um dia Guerra Junqueiro apelou. É tempo de tentarmos averiguar até que ponto o movimento estudantil, durante o tempo que medeia entre o apogeu e a queda de uma certa ideia de realizar a República, não sofreu as consequências do forte partidarismo da juventude radicalizada em integralismos mais ou menos ortodoxos, em conservadorismos neo-sidonistas ou cruzadistas, em republicanismos de feição jacobina ou socializante e, na transição da década de 20 para a década de 30, no marxismo-leninismo do reorganizado Partido Comunista Português. A resposta à nossa primeira interrogação não é fácil, se nos quisermos estribar em dados estatísticos, dada a escassez de elementos desta natureza de que dispomos. Desconhecemos as listas de adesões e só muito esporadicamente as detectamos com um ou outro número veiculado pela imprensa afecta às organizações. Um dos principais objectivos, desde sempre, dos centros e ligas académicos consistiu na promoção de conferências, por vezes na realização de comícios; também aqui nos surgem hesitações, quando procuramos medir o alcance da palavra dos oradores através duma impossível contabilização dos participantes. E já nem sequer falamos da ignorância que temos da tiragem dos poucos jornais republicanos académicos que conseguem sobreviver ao heroísmo do primeiro exemplar...
Certo é que a capacidade de expansão de uma ideia se não pode aquilatar unicamente pelo número inicial dos seus apóstolos e seguidores, mas antes pela sua maior ou menor adequação às necessidades dos grupos sociais a quem se dirige e ainda quando demonstra saber enfrentar os grandes campeões das tendências opostas, quando resolve com os próprios meios as questões vitais que eles puseram, ou demonstra peremptoriamente que tais questões são falsos problemas. Parece-nos que de 1880-90 até 1910, com todos os fluxos e refluxos inerentes a qualquer processo histórico, a difusão do corpo doutrinário e ideológico republicano contou com a participação de um substancial contingente de jovens estudantes, sobretudo dos cursos superiores. A sua inclusão na estratégia dos dirigentes do Partido Republicano Português decorre não só de uma mítica e mística imagem da mocidade das escolas, mas talvez essencialmente da verificação da existência de uma dinâmica sui generis no meio académico, consequência, em parte, dos condicionalismos específicos a esse meio. Após 1910, a correlação de forças no meio académico sofre uma considerável alteração. Os testemunhos que nos chegaram dão conta de um inquietante acréscimo de desinteresse e apatia pela res publica; se esses testemunhos provêm do sector republicano, predomina o espanto ocasionado pela eficácia revelada pelos monárquicos integralistas em captar para a sua mundividência grande parte da juventude. Quando, em 1918 e nos primeiros meses de 1919, quando até em 1926 e, com particular incidência, nos anos imediatamente posteriores a esta data, se glorifica de novo o espírito generoso e idealista da mocidade das escolas republicana, julgamos assistir a um acto de exorcismo, que só provisória e superficialmente actua sobre as sombras que se pretende esconjurar. No entreacto tentam-se explicações, apontam-se soluções. De um modo geral, existe a convicção de que a principal causa do desinteresse da juventude pelos princípios democráticos advém do carácter conservador ou mesmo reaccionário do corpo docente das várias escolas secundárias e superiores do País. No sentido de eliminar o efeito, tomam-se medidas contra a suposta causa, decretando-se a fiscalização do grau de republicanismo dos professores contratados pelo Estado, facto que sempre suscitou o desagrado da instituição universitária, ciosa das suas prerrogativas autonómicas, concedidas precisamente pela República.
Há quem, no entanto, não concorde com a pertinência dos argumentos que atribuem à educação a fonte do insucesso republicano, recordando que nos tempos da Monarquia se formou uma juventude revolucionária dentro dum sistema caduco de ensino. Há mesmo quem considere que a dilucidação do problema passa pelo uso de outros pressupostos teóricos:
  • [...] a geração que anda agora nas escolas não representa o Povo português. Com poucas excepções, apenas confirmantes da regra, os rapazes da academia pertencem às classes dominadoras da sociedade portuguesa. Os pobres, os filhos do Povo, não passam da instrução primária, bloqueados pelo preço das propinas e dos livros. Já era assim no meu tempo. Mas, no meu tempo, a classe a que eu e os meus condiscípulos pertencíamos estava solidamente instalada no Poder. Podíamos nós, os moços, permitir-nos idealismos avançados, que a vida e o interesse pessoal mais tarde quase sempre esbatiam, sem que mal de maior viesse ao mundo. [...] Mas agora... Agora que a tormenta anda no céu, o plácido lago antigo tem onda, cria torvelinhos e sacode por si próprio o batel dos nossos privilégios. Como ao outro que diz: a coisa não está para brincadeiras... E os rapazes sentem que, se não defenderem com cuidado a lancha, arriscam-se a ter de nadar. [...] É este o aspecto espiritual da nossa mocidade. Uma agonia de classe que ingenuamente se amarra a princípios de reacção. In Amâncio de Alpoim.
In Ana M. Caiado Boavida, Tópicos sobre a Prática Política dos Estudantes Republicanos (1890-1931), Limites e Condicionantes do Movimento Estudantil, Análise Social, vol. XIX, 1983.

Cortesia de Análise Social/JDACT