segunda-feira, 21 de julho de 2014

Fazes-me Falta. Leitura. Inês Pedrosa. «Contemplo-te, finalmente. Nunca pensei ver-te de meias desemparelhadas, uma cinzenta, a outra preta. Quando cruzaste as pernas e ergueste as costas com um suspiro, deitando a cabeça para trás…»

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«(…) Riam-se de ti, quando falavas da verdade. Repetiam-te que a verdade não existia, porque essa era a verdade do pedaço de tempo que nos era dado viver. Mas tu não te instalavas no teu tempo. E preocupavas-te continuamente em não te instalares num outro qualquer tempo que te tornasse anacrónica. - Quero lá saber que me achem caduca. Mas rala-me pensar que posso não ter mais do que ideias de reacção. Não nos podemos deixar levar para o campo do inimigo, meu querido. O campo do inimigo. Sabias desenhá-lo com a nitidez de um relvado de futebol. Gostavas de futebol porque era parecido com a verdade. Mesmo com árbitros comprados. Ou notas correndo em rios gordurosos debaixo das mesas de fiscais, empresários, advogados. Mesmo quando se tornou um negócio. Os maus e os bons, os puros e os impuros; sim, o correr das notas tornava as distinções mais árduas. Mas o sol sobre o relvado decidia tudo, as pernas dos homens correndo atrás da bola da verdade. - Vê-se tão bem quem joga com tudo o que é e quem joga só com o corpo, dizias tu. Porque é que a vida não é transparente como um jogo de futebol?

De quem é esta morte encenada em caixão? De onde vem esta febre fria que me sela a boca? Luto para fugir desta caixa onde me expõem e me lamentam. Se ao menos soubessem rezar. Pai Nosso, eu não quero já o céu. Aos vivos, incomoda-os o cheiro dos mortos. Por isso o sufocam em flores, incenso, velas, tudo o que possa manter esse cheiro longe do corpo concreto, ainda carne, ainda quente. No lugar do morto, é o medo que enjoa e entontece. O medo que os vivos têm de mim, agora, do futuro que lhes anuncio, vestida para enterrar. Esse medo cria ondas de calor, ondas enevoadas, que a luz das velas, a baba dos sussurros amplia. Meto-te medo, também a ti? Aqui imóvel, de olhos fechados, olhando-te ainda, para não me olhar a mim, para me afastar do cheiro a medo que é talvez o cheiro derradeiro. Concentro-me em ti, no cheiro da praia, algas e rochas, no cheiro do mar onde tantas vezes mergulhámos juntos, nos cheiros da vida que me salvem desta névoa maciça, da piedade irremediável de mim. Pai Nosso, deixa-me olhar para ele. Deixa que os meus olhos mortos subam na luz das velas, devagar, para olhar para ele.
Contemplo-te, finalmente. Nunca pensei ver-te de meias desemparelhadas, uma cinzenta, a outra preta. Quando cruzaste as pernas e ergueste as costas com um suspiro, deitando a cabeça para trás, apercebi-me desse pormenor e só então me comovi. Porque aquela tua pose sofredora, uma hora sentado de cabeça baixa, podia não querer dizer nada. Ou melhor, podia querer dizer tantas coisas que se tornava uma pose branca, de uma elegância sombria distante de mim. Passei a vida inteira a querer interpretar-te, - oh! Delicioso desperdício!, e nem sequer era por amor. Quero dizer, não era por causa daquela coisa que põe as pessoas numa exaltação de posse e de sexo. Através de ti eu existia antes de ter nascido, no vocabulário áspero e secreto de uma guerra que já não me pertenceu, moita carrasco, gatilhos olvidados, o tanas. Nem naquela noite em que despejámos sozinhos a tua preciosa garrafa de whisky velho irlandês e ficámos a ver a primeira demão do sol sobre os telhados de Lisboa nos ocorreu, sequer por um segundo, experimentar isso a que chamam a vertigem do corpo. De certa maneira, sabíamos de cor o corpo um do outro; trocávamos inibições e desaires como os miúdos trocam cromos. Mais do que alegria, era uma espécie de orgulho que nos estonteava nessa troca de intimidades funestas. Sem dormir contigo, aprendi de ti as vitórias e misérias de um homem, o rigor turbulento do prazer, o pavor de falhar, a relatividade das entregas como regra de entrega absoluta». In Inês Pedrosa, Fazes-me Falta, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 2002, ISBN 972-20-2253-9.

Cortesia de Quixote/JDACT