quinta-feira, 10 de julho de 2014

Da repressão à Perversão. Fragoso Fernandes. «Quando ele me procurou exercia uma profissão liberal e tinha um comportamento que provocava grandes preocupações aos seus familiares, nomeadamente por causa das ideações suicidárias recorrentes no seu discurso»

Cortesia de wikipedia

Uma espécie em vias de emergência
«(…) Se compararmos a superfície de Möbius com a consciência, a formiga com um conteúdo de consciência e a prega como um espaço comum à consciência pré-reflexiva e à consciência reflexiva, podemos conceber agora como é que a consciência pré-reflexiva pode pertencer simultaneamente à representação espontânea da realidade e contudo, fazendo parte do mesmo processo, que esse conteúdo faça igualmente parte da actividade reflexiva da consciência. Regressemos agora à problemática central em torno da qual se elaborou esta comunicação. Acabámos de apresentar um modelo alternativo do funcionamento da consciência em que se torna possível entender como é que Édipo deu duas respostas diferentes a uma única situação. De facto, só assim se pode compreender um estado mental em que a realidade é simultaneamente aceite e rejeitada. Se compararmos o nosso modelo com o modelo freudiano apercebemo-nos o quanto a introdução do conceito de inconsciente e de repressão modifica radicalmente a explicação dada acima. No modelo alternativo não há lugar para a repressão e à organização psicopatológica aí descrita chamar-se-ia preferencialmente perversão. A psicopatologia tende actualmente a alargar o conceito de perversão fazendo-o abranger as situações em que a realidade nem é totalmente aceite nem é completamente rejeitada. Mas será possível propor que da consciência se pode dizer que ela tem um estatuto incontornavelmente ambíguo e que o ser humano é intrinsecamente mentiroso? Depois modelo da consciência com que o qual nos propusemos explicar o comportamento de Édipo na famosa peça de Sófocles, procuraremos mostrar no historial dum nosso cliente como funciona esse modelo alternativo. Quando ele me procurou exercia uma profissão liberal e tinha um comportamento que provocava grandes preocupações aos seus familiares, nomeadamente por causa das ideações suicidárias recorrentes no seu discurso. Explicou-me que havia consultado um psicoterapeuta que atribuíra as perturbações que o afligiam às dificuldades nas relações entre os pais e ao falecimento da mãe. Era evidente que o foco dos seus problemas residia essencialmente nessa perda mas a abordagem da triangulação não trouxe resultados visíveis. Depois de observarmos como o trabalho do luto parecia bloqueado, tentámos obstinadamente que revivesse as emoções que haviam acompanhado a perda da mãe. No regime de uma sessão por semana levámos cerca de dois meses para nos aproximarmos do que julgamos ser o ponto nevrálgico dessa indagação. Trata-se do momento em que me relatou, embora com visível esforço, a seguinte vivência: Na noite em que acompanhei o velório da minha mãe tive durante algum tempo a certeza de que o seu peito se mexia como se ela estivesse a respirar». In António Fragoso Fernandes, Da repressão à Perversão, Opúsculo 5, Pequenos textos de filosofia, ciência e filosofia da ciência, Centro de Filosofia das Ciência da Universidade de Lisboa, FCT, 2011

Cortesia de CFCULisboa/JDACT