domingo, 13 de julho de 2014

A Arte de Furtar. Protestação do autor a quem ler este tratado. Anónimo. «E eis aqui como os que têm por ofício livrar-nos de ladrões vêm a ser os maiores ladrões que nos destroem. Não falo de varas grandes, porque as residências as fazem andar direitas…»

jdact e wikipedia

Como a Arte de Furtar é muito nobre
«(…) Mais claro proponho e deslindo tudo. A nobreza das ciências colhe-se de três princípios: o primeiro é o objecto, ou matéria, em que se ocupa; segundo, as regras e preceitos de que consta; terceiro, os mestres e sujeitos que a professam. Pelo primeiro princípio, é a teologia mais nobre que todas, porque tem a Deus por objecto. Pelo segundo, é a filosofia, porque suas regras e preceitos são delicadíssimos e admiráveis. Pelo terceiro, é a música, porque a professam anjos, no céu e, na terra, príncipes. E por todos estes três princípios é a arte de furtar muito nobre, porque o seu objecto e matéria em que se emprega é tudo o que tem nome de precioso. As suas regras e preceitos são subtilíssimos e infalíveis; e os sujeitos e mestres que a professam, ainda mal, que as mais das vezes são os que se prezam de mais nobres, para que não digamos que são senhorias, altezas e majestades. Na formação de um mosquito mostra Deus mais seu grande entendimento que na fábrica do Universo. Quero dizer que não engrandece tanto as ciências a matéria em que se exercitam como o engenho da arte com que obram. E como o engenho e arte de furtar anda hoje tão subtil que transcende as águias, bem podemos dizer que é ciência nobre. [...]

Como os maiores ladrões são os que têm por ofício livrar-nos de outros ladrões
Não pode haver maior desgraça, no mundo, que converter-se, a um doente, em veneno a teriaga que tomou para vencer a peçonha que o vai matando. Ferir-se e matar-se um homem, com a espada que cingiu ou arrancou para se defender de seu inimigo, a arrebentar-lhe nas mãos o mosquete e matá-lo, quando fazia tiro para se livrar da morte, é fortuna muito má de sofrer. E tal é que acontece em muitas Repúblicas do mundo, e até nos reinos mais bem governados, os quais, para se livrarem de ladrões, que é a pior peste que os abrasa, fizeram varas que chamam de justiça, isto é, meirinhos, almotaceis, alcaides; puseram guardas, rendeiros e jurados; e fortaleceram a todos com provisões, privilégios e armas. Mas eles, virando tudo de carnaz para fora, tomam o rasto às avessas e, em vez de nos guardarem as fazendas, são os que maior estrago nos fazem nelas, de sorte que não se distinguem dos ladrões que lhes mandam vigiar em mais senão que os ladrões furtam nas charnecas e eles no povoado; aqueles com carapuças de rebuço e eles com as caras descobertas; aqueles com seu risco e estes com provisão e cartas de seguro.
Declaro-me: manda a lei aos senhores almotaceis que vigiem as padeiras, regateiras, estalagens e tabernas, etc., se vendem as coisas por seu justo preço. Antecipam-se todas as pessoas sobreditas, mandam a casa as primícias e meias natas de seus interesses e ficam logo licenciadas para maquinarem tudo como quiserem. Têm obrigação os meirinhos e alcaides de tomarem as armas defesas, prenderem os que acharem de noite e darem cumprimento aos mandatos de prisões e execuções que se lhes encarregam. Dissimulam e passam por tudo, pelo dobrão e pela pataca que lhes metem na bolsa, e seguem-se daí mortes, roubos e perdas intoleráveis. Corre por conta dos guardas e rendeiros a defensão dos pastos, vinhas, olivais, coutadas, que não as destruam os gados alheios. Quem os tem avença-se com eles, por pouco mais de nada, que vem a ser muito, porque concorrem os poucos de muitas partes; ficam livres para poderem lograr as fazendas alheias, como se foram próprias, sem incorrerem nas coimas. E eis aqui como os que têm por ofício livrar-nos de ladrões vêm a ser os maiores ladrões que nos destroem. Não falo de varas grandes, porque as residências as fazem andar direitas, nem das garnachas, que esperam maiores postos e não querem perder o muito pelo pouco. Livre-nos Deus a todos de oferecimentos secretos, que correm sua fortuna sem testemunhas; aceitos, torcem logo as meadas, até quebrar o fiado pelo mais fraco, e a poder de nós-cegos o fazem parecer inteiro. Até nas residências, onde se dão em se fazerem as barbas uns aos outros, fica tudo sem remédio e com a maior parte da presa, em um momento, quem nos ia restaurar dos danos de um triénio.
Milhares de exemplos há que explicam bem esta espécie de furtos, e melhor que todos o que poderemos pôr nos físicos; mas manda a Sagrada Escritura que nos honremos propter sanitatem, e assim é bem que lhes guardemos aqui respeitos, ainda que a verdade sempre tem lugar. Digamo-lo, ao menos, dos boticários. Têm estes um livrinho, não é maior que uma cartilha, e nada tem de sua doutrina, porque se devia de compor no limbo. Certo é que o não imprimiu Galeno, que houvera de ser muito bom cristão se não fora gentio, porque tinha bom entendimento. A este livro chamam eles Qui pro quo, quer dizer uma coisa por outra; e o título basta para se entender que contém mais mentiras que verdades. Antes, só uma verdade contém e é que, em tudo, ensina a vender gato por lebre, como agora. Se lhe faltar na botica a água de escorcioneira, que receita o médico para o cordial, que lhe podem botar água de cevada cozida; e se não tiverem pedra de bazar, que pevides de cidra tanto montam; se não houver óleo de amêndoas, que lhe ponham o da candeia. E assim vai baralhando tudo, de maneira que não pode haver boticário que deixe de ter quanto lhe pedem. E daí pode ser que veio o provérbio, com que declaramos a abundância de uma casa rica, que tudo se acha nela como em botica». In Manuel da Costa, Arte de Furtar, 1ª edição de 1743 ou 1744, Lisboa, Editorial Estampa, 2001, Fundação Calouste Gulbenkian.

Cortesia de FCG/JDACT