domingo, 8 de junho de 2014

Uma História da Leitura. Alberto Manguel. «A mãe de “Borges” começou a ficar impaciente! … ‘não sei porque perdes o teu tempo com o anglo-saxão, em vez de estudares uma coisa útil, como latim ou grego!’ Por fim, ele voltou-se e pediu-me vários livros…»

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A Última Página
«(…) Eu queria viver entre os livros. Aos dezasseis anos, em 1964, encontrei emprego para o período depois das aulas na livraria Pygmalion, uma das três livrarias anglo-alemãs de Buenos Aires. A proprietária era Lily Lebach, uma judia alemã que tinha fugido aos nazis e se instalara em Buenos Aires no final da década de 30, e que me encarregava diariamente da tarefa de limpar o pó a cada um dos livros da livraria, método pelo qual ela julgava (acertadamente) que eu depressa ficaria a conhecer a existência e a sua localização nas prateleiras. Infelizmente, muitos dos livros aliciavam-me para além da mera limpeza; queriam que eu pegasse neles, os abrisse e inspeccionasse e, por vezes, nem mesmo isso bastava. Algumas vezes furtei um livro tentador; levava-o para casa comigo, escondido no bolso do casaco, pois não me bastava lê-lo; tinha de o possuir, de o chamar meu.
A romancista Jamaica Kincaid, ao confessar o mesmo crime de furtar livros da biblioteca na sua infância em Antígua, explicou que não era sua intenção cometer um furto; mas depois de ler um livro, não suportava a ideia de me separar dele. Também descobri em pouco tempo que não se lê apenas Crime e Castigo ou A Tree Grows in Brooklyn. Lê-se uma certa edição, um exemplar específico, reconhecível pelo grão do papel, rugoso ou suave, pelo seu odor, por um pedacinho rasgado na pâgïnaYY e uma mancha de café no canto direito da contracapa. A regra epistemológica para a leitura, estabelecida no século II, segundo a qual o texto mais recente substitui o anterior, visto que supostamente o contém, raramente tem sido aplicável no meu caso. No início da Idade Média, os escribas tinham o dever de corrigir os erros que detectassem no texto que copiavam, produzindo desta forma um texto melhor; para mim, no entanto, a edição na qual lia um livro pela primeira vez tornava-se a editio princeps, com a qual todas as outras tinham de ser comparadas. A imprensa deu-nos a ilusão de que todos os leitores de Dom Quixote lêem o mesmo livro. Para mim, mesmo hoje em dia, é como se a invenção da imprensa nunca tivesse acontecido, e cada exemplar de um livro permanece tão singular como a fénix.
No entanto, a verdade é, que determinados livros emprestam certas características a determinados leitores. Encontra-se implícita na posse de um livro a história das suas leituras prévias, ou seja, cada novo leitor é afectado por aquilo que imagina que o livro foi nas mãos dos seus predecessores. O meu exemplar em segunda mão da autobiografia de Kipling, Something of Myself, que comprei em Buenos Aires, tem um poema manuscrito na página de guarda, datado do dia da morte de Kipling. Será que o poeta repentista dono deste exemplar era um ardente imperialista? Um apreciador da prosa de Kipling que reconhecia o artista mesmo através da sua pátina jingoísta? O meu predecessor imaginário afecta a minha leitura, porque dou comigo a dialogar com ele, defendendo este ou aquele argumento. Um livro traz a sua própria história ao leitor.
A Sra. Lebach sabia decerto que os seus empregados surripiavam livros, mas suspeito que, enquanto ela achasse que não excedíamos certos limites tácitos, continuaria a permitir a prática desse crime. Uma ou duas vezes, quando me viu embrenhado nalgum livro recente, mandou-me meter mãos ao trabalho e guardar o livro para o ler em casa nos meus tempos livres. Passaram-me pelas mãos livros maravilhosos na sua livraria: José e os Seus Irmãos, de Thomas Mann, Herzog, de Saul Bellow, […] Confissões de Zeno, de Italo Svevo, os poemas de Rilke, de Dylan Thomas, de Emily Dickinson, de Gerard Manley Hopkins, os poemas de amor egípcios traduzidos por Ezra Pound, a epopeia de Gilgamesh.
Uma tarde, Jorge Luís Borges veio à livraria acompanhado pela mãe, uma velha senhora de oitenta e oito anos. Era famoso, mas eu lera apenas alguns dos seus poemas e histórias, e não me sentia avassalado pela sua literatura. Estava quase completamente cego, mas, mesmo assim, recusava-se a usar bengala, e passava a mão pelas estantes como se os seus dedos pudessem ler os títulos. Andava à procura de livros para estudar anglo-saxão, que era a sua paixão mais recente, e tínhamos encomendado para ele o dicionário de Skeat e uma versão anotada de Battle of Maldon. A mãe de Borges começou a ficar impaciente; Ó Jorginho, exclamou ela, não sei porque perdes o teu tempo com o anglo-saxão, em vez de estudares uma coisa útil, como latim ou grego! Por fim, ele voltou-se e pediu-me vários livros. Encontrei alguns deles, tomei nota dos títulos dos outros e então, quando já estava para se ir embora, perguntou-me se tinha os serões ocupados, porque (disse-o em tom de desculpa) precisava de alguém para lhe ler em voz alta, visto que a mãe se cansava muito depressa. Eu acedi». In Alberto Manguel, Uma História da Leitura, Editorial Presença, Lisboa, 1998, ISBN 972-23-2339-3.

Cortesia Presença/JDACT