quinta-feira, 26 de junho de 2014

Os Teatros de Lisboa. Júlio C. Machado. Ilustrações de Bordalo Pinheiro. «Temos o paletó D’Orsay, assim chamado por haver sido o famoso conde que lhe deu nomeada! É amplo, é soberbo, mas tem o forro pesado de mais. Não lhe convém talvez… Eu ia fallar…»

Il nostro sympathico
jdact

NOTA: De acordo com o original

«(…) De uma occasião, intendeu talvez que isso não era bastante, e recorreu a um expediente curioso. Em nos encontrando no Passeio Publico, eu sosinho ou com algum amigo, elle com sua mulher, uma ingleza enxertada em italiana, baixinha, branca, brilhante, e em numerosa companhia ás vezes de artistas ou de diletanti, que se recreavam em fazer com elle a passeggiata; em nos encontrando, já elle dizia para o seu rancho, indicando-me bizarramente á sua illustre comitiva: il nostro sympathico! Eu fazia-me corado, ficava sem saber se devia tirar o chapéu a agradecer, e ia seguindo o meu caminho n’uma vaidosa perturbação. D’alli a dois dias, viamo-nos outra vez, e, sem comprimento, sem paragem, sem mais tir’te nem guard’te, Beneventano deixava cair magestaticamente de seus sublimes lábios estas palavras, meu enlevo e minha gloria: il nostro sympathico! Eu tinha vinte annos; e, quando elle me disparava esta amabilidade á queima-roupa, deitava umas olhadelas á mulher, que era lindissima, em que se me iam os vinte annos todos.
No dia de um folhetim a propósito da Semiramis, o plumoso…, não, o encasacado cantor, foi a minha casa. Grande conversação, grandes shake-hands, e brava, e mille grazzie, e tanto gentile; ficámos com uma amisade de pedra e cal. N’uma tarde húmida d’esse inverno, estando em sua casa e querendo vir para a minha, oppôz-se elle galhardamente. – Jante comnosco! - Hoje não pôde ser. - Pode, sim. - Não pode, não. E, quando ia a despedir-me: - Meu caro Machado, repare que está choviscando! - Não tem duvida. - Vem sem paletó, e eu não consinto que saia d’esse modo! Na minha vasta guarda-roupa, e bem deve saber até que ponto o barão Beneventano leva o capricho e a novidade nas toilettes!, ha mais de um sobretudo, que deva convir-lhe. E, mettendo-me o braço e levando-me pelas casas dentro, o galantuommo ia dizendo: - Temos o paletó D’Orsay, assim chamado por haver sido o famoso conde que lhe deu nomeada! É amplo, é soberbo, mas tem o forro pesado de mais. Não lhe convém talvez… Eu ia fallar.
 - Temos o elegantissimo brummell, paletó para de dia, tirando o nome do nunca esquecido Georges Bryan Brummell, rival em gloria dos Lausun e dos Grammont… Eu queria dizer uma coisa. - Temos o paletó Galles, o que ha de mais distincto, o sobretudo predilecto do principe Georges IV… Casimira branca, botões grandes de seda, cintura marcada… Este é que ha de ser. E tirava-o do cabide, e vestia-m’o, ao pronunciar taes fallas. O paletó era enorme para mim. Dava-me a cintura no sitio em que as costas mudam de nome... Um pouco vexado, um pouco indeciso, não tive remédio senão acceitar, e sair.
Na escada despi-o logo, e, com elle no braço, fui para o Chiado. A chuva apertara mais, recolhi-me na loja de papel do Pereira, onde estavam recolhidos também uns poucos de homens mais ou menos meus conhecidos. D’alli a pouco, quem ha de passar? Beneventano. Beneventano, que, ao ver-me, entra na loja, e vivamente surprehendido me diz: - Como! Machado! Despiu-o!!! - Para o não estragar!, respondi eu balbuciando. - Qual estragar! E elle ahi m’o veste outra vez, diante d’aquella gente toda, que sustinha difficilmente o riso ao ver-me mettido n’aquella galèreIn Júlio César Machado, Os Teatros de Lisboa, Ilustrações de Bordalo Pinheiro, Livraria Editora Mattos Moreira, 1874, PN 2796 L5M25, Library Mar 1968, University of Toronto.

Cortesia de LEMMoreira/1874/Bordalo Pinheiro/JDACT