domingo, 15 de junho de 2014

Lisboa. Encruzilhada de Muçulmanos Judeus e Cristãos. 850º Aniversário da Reconquista de Lisboa. Paulo Pereira. «Preservar por preservar pode ser prejudicial para a homogeneidade de um conjunto arquitectónico, e pode prejudicar a própria leitura de um determinado conjunto patrimonial»

Cortesia de wikipedia

Arqueologia na Grande Cidade
«(…) A criação de empresas de arqueologia tem sido, também, um suporte importante e corrente para a contratação e adjudicação de trabalhos arqueológicos, entendidos não já como uma excepção ou um capricho, mas como uma componente indissociável da preservação do património e dos próprios empreendimentos que os possam afectar. E a disponibilidade destas equipas tem igualmente contribuído para a profissionalização da arqueologia, entendida esta, cada vez, mais como uma função operatória no âmbito mais vasto do urbanismo e do território. Outras acções de caracter pedagógico são outros tantos exemplos de como a arqueologia urbana, longe de se ser um obstáculo, se pode constituir como uma mais-valia na intervenção na cidade, encontrando-se neste caso as experiências bem sucedidas de musealização in situ de vestígios importantes. Mas também aqui há que agir com cautela. Uma intervenção arqueológica é, pela sua natureza, fracturante, indutora de falhas e interrupções no tecido urbano consolidado ou de nexos coerentes pré-existentes, pelo que a musealização à outrance só deve ser encarada caso não prejudique a qualidade do ambiente urbano. Preservar por preservar pode ser prejudicial para a homogeneidade de um conjunto arquitectónico, e pode prejudicar a própria leitura de um determinado conjunto patrimonial. O mesmo é dizer que o fundamentalismo (como qualquer fundamentalismo, aliás...) pode ser prejudicial caso seja essa a via escolhida, sendo que a criação de conhecimento através do registo arqueológico pode também, em boa medida, ser uma posição legítima, desde que, claro está, resulte de uma intervenção preventiva e não de um mero e precipitado salvamento motivado por desleixo ou laxismo.
Uma das formas de ultrapassar as dificuldades crescentes que os ciclos de obras públicas nas grandes cidades tem criado decorre de um novo regime de conceptualização do espaço urbano. De facto, através dos instrumentos administrativos das urbes, passam a existir parcelas de cidade consideradas em si mesmas um monumento. Assim acontece, por exemplo, com a Baixa de Lisboa a qual, independentemente da sua variabilidade e da sua dinâmica própria se encontra classificada como Imóvel de Interesse Público. Ora, da mesma forma que num monumento homogéneo e solidário fisicamente, como um conjunto monástico, por exemplo, é impensável proceder a qualquer intervenção que não seja precedida de investigação arqueológica, o mesmo deverá acontecer nos conjuntos urbanos classificados, que devem ser entendidos como monumentos eles-mesmo, unos e indivisíveis. Então será possível conceber todo esse conjunto como uma área de intervenção delicada (e dedicada), com pressupostos arqueológicos determinantes e condicionantes da suas alterações eventuais. E, este esforço de conceptualização deve estender-se não apenas ao aparente, mas também ao inaparente e ao que existe em potência, não revelada.
Nesta conformidade, será possível promover cartas de património arqueológico urbano, para além de dispositivos já contemplados em alguns PDM’s, com maior ou menor eficácia, como seja a classificação funcional de áreas. Tais cartas terão o mesmo valor que uma planta de redes soterradas, nas quais qualquer alteração é cuidadosamente estudada. E terão outra consequência: a de levar a assumir que determinadas partes da cidade não são pura e simplesmente passíveis de qualquer intervenção em obra, ou seja, deverão ser consideradas reservas absolutas de informação arqueológica. Eis o que poderia contornar com muito maior felicidade, os problemas causados pelo ciclo, sensível nos anos 90, da criação de parques subterrâneos e do alargamento da rede do metro. A inscrição da arqueologia na história das cidades e na sua dinâmica não é, por isso mesmo, coisa fácil. Em permanente mutação, a cidade convive mal com os estaleiros arqueológicos. Mas a experiência acumulada, a atenção dos meios de comunicação da arqueologia, permite afirmar que a arqueologia passou a ocupar um lugar incontornável no desenvolvimento da memória das cidades antigas e modernas, sobretudo se se tiver em conta que a arqueologia não se restringe a uma esfera disciplinar hermética e impenetrável.
A arqueologia, especialmente em ambiente urbano, é hoje entendida de uma forma integrada, sendo o testemunho arqueológico não apenas o que jaz soterrado mas também tudo aquilo que, acima da cota 0, como se costuma dizer na gíria patrimonial, é informação arqueológica, e histórica e arquitectónica, ou seja, um modo de enriquecer o conhecimento do nosso habitat e das suas múltiplas dimensões, incluindo, entre estas, uma quarta dimensão, a da memória, imaterial». In Paulo Pereira, Arqueologia na Grande Cidade, Lisboa, Encruzilhada de Muçulmanos, Judeus e Cristãos (850º aniversário da reconquista de Lisboa), Projectos Portos Antigos do Mediterrâneo, Acção Piloto Portugal/Espanha/Marrocos, FEDER, Edições Afrontamento, Porto, 2001, ISSN 0872-2250.

Cortesia de EAfrontamento/JDACT