domingo, 22 de junho de 2014

Lisboa. Arquitectura e Urbanismo. José Augusto França. «… foi a lenta criação de um bairro novo, definido a par das muralhas ocidentais e ao longo delas, desde o rio até ao ângulo de Noroeste, e acima deste, para a Cotovia. Trata-se da ‘Vila Nova de Andrade’, ou ‘Bairro Alto de S. Roque’. Todo o sítio fora propriedade do mestre Guedelha Palançano»

Cortesia de wikipedia e jdact

A Cidade Manuelina e Filipina
«(…) De resto, outros conventos e igrejas se ergueram no século XVI, poucos já dentro da cidade (a Graça reconstruída, como o Espírito Santo), vários não longe dela, pelo exterior (Anunciada, S. Roque, Sant’Antão, Esperança, igrejas do Loreto, de Sta. Catarina do Monte Sinai), outros mais distantes (Santos-o-Novo, já desde fins do século XV, Madre de Deus, Chelas, Odivelas, S. Domingos de Benfica, S. Francisco de Xabregas, Capuchos, os Jerónimos). Em meados do século, Lisboa, grande metrópole à escala europeia» (Oliveira Marques), contaria cerca de 80 mil habitantes, com 432 ruas e travessas, 89 becos, e 62 postos que viriam a evoluir do seu estatuto de meio rural para sítios e depois bairros, conforme um Sumário (das) Coisas (…) de Lisboa, de Cristóvão Rodrigues Oliveira publicado em 1554 ou 55, e que é uma das primeiras descrições estatísticas da cidade que se conhecem. De meados para fins de Quinhentos, por desdobramento (quer dizer por aumento de população fixada), definiram-se doze freguesias além das vinte e três existentes já no século XIII.
Mas outra descrição da cidade foi publicada em 1554: Urbis Olisiponis Descriptio, de Damião de Góis, em 1554. Este humanista distinguia então em Lisboa sete monumentos principais: a Misericórdia, o Hospital do Rossio e os Estaos, os armazéns do trigo, os das Casas da Mina e da Índia, a Alfândega e o Arsenal, a que atribuía magnificência e sumptuosidade Inacreditáveis, adjectivos que, aliás, empregava também, juntamente com elegante, sobre muitas das construções, quer de pessoas principais e nobres, quer de particulares», e alguns conventos. Contrariamente, dois embaixadores de Veneza, em 1580, achavam que todas as casas dos Senhores, mesmo as maiores, eram construídas com pouca regularidade e sem carácter arquitectónico e não mereciam consideração quanto à matéria. Já em 1571, aliás, Francisco de Holanda lamentava que a Lisboa falecessem monumentos condignos. Uma excepção, porém: a casa ribeirinha dos Bicos, do herdeiro de Afonso de Albuquerque, de gosto italianisante, já no primeiro quartel do século.
Outra documentação, de carácter gráfico, foi abundantemente devida a autores estrangeiros, S. Munster (Basileia, 1541) e G. Braunio (Colonia, 1572 e 93), que, sobretudo o último, puseram nas vistas panorâmicas que editaram cuidados de informação que permitem uma ideia de conjunto ou de massa da cidade de então. O flamengo S. Beninc, em outra vista desenhada em 1530-34, representava também a margem do rio e já punha nela os Jerónimos e a Torre de Belém. Estes monumentos, tal como a Madre de Deus e a Misericórdia, exprimem um estilo que, contemporâneo do período dos Descobrimentos, a eles se ajustou, com interpretação simbólica, em termos românticos, o manuelino, referido ao seu construtor, o rei Manuel I. A Oeste, a caminho da barra, ou a Leste, as três igrejas e a bonita torre defensiva à beira-rio enriqueceram a cidade do princípio de Quinhentos com edifícios sumptuosos nos seus lavores de pedra, que marcaram uma época na história da arquitectura portuguesa, em Lisboa especialmente expressa. Lisboa cujos limites ribeirinhos a nascente e a poente ficavam assim marcados pela Madre de Deus e pelos Jerónimos.
Mas, mais importante que estes monumentos pontuais, para a vida da cidade e para o seu processo urbanístico, foi a lenta criação de um bairro novo, definido a par das muralhas ocidentais e ao longo delas, desde o rio até ao ângulo de Noroeste, e acima deste, para a Cotovia. Trata-se da Vila Nova de Andrade, ou Bairro Alto de S. Roque, cuja edificação regularizada se realizou desde os princípios de Quinhentos e ainda pelo século seguinte, conforme estatutos sociais sucessivos. Todo o sítio fora propriedade de um astrólogo e cirurgião judeu, valido dos quatro primeiros reis da dinastia de Avis, mestre Guedelha Palançano, cuja viúva, perante as perseguições à sua colónia realizadas nos fins de Quatrocentos por Manuel I, se viu levada a vender as terras a dois fidalgos da corte. Os herdeiros destes entenderam-se de modo que um deles, Bartolomeu Andrade, cuja família já tivera casa nobre, a S. Pedro de Alcântara, decidiu em 1513 uma larga operação de loteamento logo posta em prática, a partir do rio. Tratou-se, a princípio, de um caseamento algo irregular e modesto, destinado a habitação de artesãos e marinheiros, gente ligada à expansão marítima, que se multiplicava e não tinha já pouso na cidade, sobretudo após o terramoto de 1531 que a terá grandemente prejudicado. A edificação foi rápida, açodada por multas se ela tardasse mais de três anos, e ocupou uma primeira zona, até à meia encosta marcada pela via que saía das Portas de Santa Catarina descendo pelo Combro a caminho da Horta Navia. Acima dessa linha, num aclive mais suave, pela altura de S. Roque até à Cotovia, onde os Andrades tinham casa, outra urbanização se processou, de maior standing, envolvendo já palácios e casas nobres, ao fim do século e em Seiscentos ainda (casas dos Ericeiras, Soures, Lumiares, Minas). Registe-se que, em 1553, os Jesuítas vieram instalar-se junto à cerca, no limite das terras dos Andrades, e o seu renome e influência contribuíram sem dúvida para a nobilitação da Vila Nova transformada em Bairro». In José Augusto França, Lisboa. Urbanismo e Arquitectura, Director da Publicação Álvaro Salema, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, Oficinas Gráficas da Livraria Bertrand, série Artes Visuais, Instituto Camões, 1980.

Cortesia de ICamões/JDACT