terça-feira, 10 de junho de 2014

Fernando Pessoa. Poeta da Hora Absurda. Mário Sacramento. «”Mantenho (...) o meu propósito de lançar pseudònimamente a obra Caeiro-Reis-Campos. Isso é toda uma literatura que eu criei e vivi, que é sincera, porque é sentida (...). (...) É sentido na pessoa de outro”…»

Cortesia de wikipedia

«Não é alegria nem dor esta dor com que me alegro. E a minha bondade inversa não é nem boa nem má». In Hora Absurda

Genialidade Absurda
«(…) Posto isto, perguntamo-nos: que se visa, afinal, na obra de Pessoa quando se conclue que é genial? - Decerto que não a trouvaille da heteronímia! Então? A poesia ortónima tão-só, reputando-se a restante acidental ou espúria, entretenimento do infante-que-todo-o-génio-também-é ou subproduto dum aliquando Homerus etc. Seria subestimar o que afinal mais solicita a nossa atenção no caso do poeta, seria negá-lo mesmo, já que não há na poesia ortónima o que quer que lhe dê qualitativamente vantagem sobre a dos seus pares. Será, portanto, necessariamente, a obra global. Mas... se a poesia heterónima é do autor fora da sua pessoa: (se) é de uma individualidade completa fabricada por ele, há que ponderar: I) sendo todas essas individualidades completas, como tais, necessariamente distintas e inconfundíveis, só será possível candidatar Fernando Pessoa a um lugar de génio obtendo-se-lhe um teor seu próprio… pela média dos teores desses tais. Tal tipo de génio-eclético só serviria para tornar mais aparente o absurdo duma questão que, sem ele, já salta aos olhos, pelo que o dispensaremos; 2) posta de lado tal hipótese, resta admitir que em cada uma das individualidades-completas existe, de per si, um geniozinho; e então: qual deles é o autêntico, o pessoal e intransmissível génio de Fernando Pessoa?
Retomemos, porém, antes de concluir, a frase há pouco parcialmente citada, retranscrevendo-a na íntegra e sublinhando a parte então amputada: a poesia heterónima é do autor fora da sua pessoa; é de uma individualidade completa fabricada por el. como o seriam os dizeres de qualquer drama seu. E recordemos que já em igual sentido Pessoa escrevia em 1913 a Côrtes-Rodrigues: Mantenho (...) o meu propósito de lançar pseudònimamente a obra Caeiro-Reis-Campos. Isso é toda uma literatura que eu criei e vivi, que é sincera, porque é sentida (...). (...) É sentido na pessoa de outro; é escrito dramàticamente, mas é sincero (no meu grave sentido da palavra) como é sincero o que diz o rei Lear, que não é Shakespeare, mas uma criação dele.
Confessemo-lo: o alibi é de respeito. Tentemos, contudo, desmascará-lo: O Rei Lear é uma peça dramática de Shakespeare; o rei Lear é um personagem dessa peça. A peça vive dum conflito imaginado, articulado, desenvolvido e resolvido dramaticamente pelo seu autor. Esse autor continha em si, antes da realização da peça, todos os elementos susceptíveis de se transfigurarem no drama. Contudo, até ao momento da sua criação, não passava disso: de os conter em latência; e só veio a revelar-se autor dramático quando chegou a articulá-los através da prosecução desse tal desfecho. Só na medida em que, antecipando-se a ele, o autor dos personagens já visionava e dominava (que não eles!) o sentido do conflito, criava afinal dramaticamente os próprios personagens e falava, em conformidade, por eles. Quer dizer: o autor só está nas partes na medida em que elas pressupõem um todo». In Mário Sacramento, Fernando Pessoa, Poeta da Hora Absurda. Contraponto, University of Toronto, Lisboa, 1960

Cortesia de PCampos/JDACT