sexta-feira, 13 de junho de 2014

Ensaios sobre Autores Portugueses do século XIX. Álbum de Família. Óscar Lopes. «… um quiproquó com outros amores, os de Carvalho e Melo com a sua irmã, dele, o conde do Sardoal, e acontece ainda que, antes do adultério, essa irmã do conde tivera uma filha legítima, por quem mais tarde o filho ilegítimo de Pombal se apaixona sem saber que é sua meia-irmã»

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De o Arco de Sant’Ana a Uma Família Inglesa
Arnaldo Gama
«(…) O romance histórico, como memorial animado das glórias liberais e também das grandes tragédias tripeiras, é, como se sabe, sobretudo originalidade de Arnaldo Gama, cuja atenção ainda aliás se projecta para-a região dos seus próximos antepassados nobres de Riba de Ave e Riba-Cávado, para épocas várias de Coimbra, onde estudou, e para outros lugares mais exóticos. A sua carreira inicia-se quase paralelamente à de Camilo, de quem foi colega coimbrão, escrevendo folhetins, nomeadamente para A Península (1852-1853), e depois para o Comércio do Porto, onde saíram quase todos os seus mais conhecidos romances antes da publicação em volume. Tal como Camilo, e, de um modo geral, os ficcionistas portugueses de inícios do decénio de 1850, as suas predilecções voltam-se para os complicados enredos moralmente a preto e branco, em que as infâmias, os ódios vesânicos, os lances refalsados, os actos de sedução e abandono, as perseguições pertinazes e as grandes violências físicas ou torturas morais, as vinganças implacáveis, contracenam com a generosidade, a compaixão, a abnegação sem limites, como, por exemplo, acontece nos quatro volumes, num total de mais de setecentas páginal de O Génio do Mal (1856-1857), cuja acção se centra no Porto de cerca de 1840, com o romance Honra ou Loucura (1850), que decorre em Coimbra no século XIX, ou com Paulo, o Montanhês (1852), que transpõe da Calábria ou da Floresta Negra para a serra da Estrela um enredo tipicamente romântico de salteadores à maneira de Schiller ou de Dumas Pai.
Mais tarde, ao longo dos anos de 60, enquanto Camilo apura a sua típica alternação entre a novela das grandes exaltações e expiações passionais e a novela satírica, acusando em qualquer caso uma crescente mestria no traço justo, na sequência de acção incisiva, e nas súbitas guinadas de sarcasmo ou de pathos efectivamente pungenães, Arnaldo Gama mantém o seu gosto pelo emaranhamento de situações melodramáticas, sem dispor de uma linguagem à altura de tão ostensiva ou pretensa tensão moral, mas conseguindo prender a atenção por qualidades eminentemente didácticas de ambientação histórica, como elegantes traçados topográficos do Porto, no tempo de  Afonso V, ou então-na época pombalina, como a animção de grandes movimentos multitudinários, como o desenho preciso de tipos histórico-sociais no seu vestuário e no enquadramento característico da sua vida profissional ou doméstica, ou como o largo painel táctico da tomada do porto pelo exército francês, em 1809, e dos episódios de guerrilha ou de batalhas em forma através dos quais, mais tarde, no mesmo ano, se processa a sua retirada.
Exemplifiquemos primeiro o seu lastro melodramático. Assim, o primeiro dos seus melhores romances históricos, Um Motitn Há Cem Anos, saído em volume em 1861, contém em sete capítulos, cerca de cem páginas, o núcleo daquilo que é, talvez, o mais rocambolesco, e factual ou moralmente o mais implausível, dos enredos de Arnaldo Gama: através de uma catadupa de reconhecimentos e de longas explicações monologais em retrospectiva, vem a saber-se que um dos futuros justiçados pelo motim contra o monopólio pombalino da Companhia-Geral dos Vinhos do Porto é, nada mais nada menos, que um filho adulterino do próprio Pombal; mas imagine-se que o protector desse filho que Pombal, aliás, só identifica quando ele vai ser executado, é um agente secreto do Sebastião José de Carvalho e Melo, um conde do Sardoal, já irreconhecível e dado como morto na batalha de Friédberg, o conde do Sardoal que matara a sua própria e inocente mulher por um quiproquó com outros amores, os de Carvalho e Melo com a sua irmã, dele, o conde do Sardoal, e acontece ainda que, antes do adultério, essa irmã do conde tivera uma filha legítima, por quem mais tarde o filho ilegítimo de Pombal se apaixona sem saber que é sua meia-irmã.
O imbroglio é muito mais complicado do que isto, porque, entre outras coisas, mete ainda um mistério e um reconhecimento completamente gratuitos e infuncionais de certa Bruxa da Toire da Marca, e uma cadeia de desencontros amorosos do tipo daquele vicentino amor loco, amor loco, / yo por vos y yos por otro. A efabulação de tudo isto processa-se ao longo de extensas tiradas dialogais, com fases de intensa ternura, ciúme ou ódio, em transes textualmente de insânia, com gargalhadas infernais, raivas satânicas e outras manifestações caracterizadas por estes mesmos adjectivos infernal e satânico». In Óscar Lopes, Álbum de Família, Ensaios sobre Autores Portugueses do século XIX, Editorial Caminho, Colecção Universitária, Lisboa, 1984.

Cortesia de Caminho/JDACT