quinta-feira, 22 de maio de 2014

Vagabundo ao Serviço de Espanha. Camilo Cela. «Depois, sobre o terreno, todos estes projectos caem em saco roto e as coisas saem, como sempre acontece, como podem. Procura umas notas, consulta uma cadernetazita, folheia uma velha geografia…»

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A Alcarria
«O viajante estava deitado, de barriga para o ar, numa chaise-longue forrada de cretone. Olha, distraidamente, para o tecto e deixa voar livremente a imaginação, que salta, como desajeitada borboleta moribunda, roçando, com leves pancadas, nas paredes, nos móveis, no candeeiro aceso. Está cansado e sente um grande alívio deixando cair as pernas, como marionetas, na primeira postura que querem encontrar. O viajante é um homem jovem, alto, magro. Está em mangas de camisa a fumar um cigarro. Está já há várias horas sem falar, várias horas em que não tem com quem falar. De quando em quando bebe um sorvo, nem pequeno nem grande, de whisky ou assobia, baixinho, alguma cantiguinha.
Na casa tudo é silêncio; a família do viajante dorme. Na rua só alguns táxis errantes rompem, muito de tarde em tarde, a piedosa intimidade dos guardas-nocturnos. O quarto está revolto. Em cima da mesa, centenas de folhas desordenadas dão fé de muitas horas de trabalho. Estendidos no chão, espetados com punaises nas paredes, dez, doze, catorze mapas com notas e cotas a tinta, com fortes traços de lápis vermelho, com bandeirinhas brancas fixas com alfinetes. - No fim, nunca nada disto serve para nada. Acontece sempre a mesma coisa! A cavalo numa cadeira dorme o casaco de dura bombazina. No tapete, ao lado de um montão de romances, descansam as rebitadas botas de andar. Um cantil novo espera a sua carga de espesso e saudável vinho tinto. Soa no nobre, no velho relógio de nogueira, a última badalada de umas altas horas da noite.
O viajante levanta-se, passeia pelo quarto, põe direito um quadro, empurra um livro, cheira umas flores. Diante de um mapa da península detém-se, ambas as mãos nos bolsos das calças, as sobrancelhas quase imperceptivelmente franzidas. O viajante fala devagar, muito devagar, consigo mesmo, em voz baixa e quase como se quisesse dissimular. - Sim, Alcarria. Deve ser um bom sítio para ir, uma boa região. Depois, veremos; se calhar não saio mais; depende. O viajante acende outro cigarro, um pouco mais e queimava o dedo com o fósforo, serve-se outro whisky. - Alcarria de Guadalajara. A de Cuenca, não; em Cuenca talvez ande o pinhal; ou La Mancha, quem sabe!, com os seus lentos caminhos. O viajante faz um gesto com a boca. - E também não importa se me desviar um pouco, se é que me desvio. Afinal de contas, qual é o problema? Ninguém me obriga a nada; ninguém me diz: vá por aqui, suba por ali, percorra aquele outeiro, esta encostazinha, este outro vale suave e de bom caminhar.
O viajante remexe nos papéis da mesa à procura dum duplo decímetro. Encontra-o, aproxima-se de novo da parede e, com o cigarro na boca e o sobrolho franzido para que os olhos não se encham de fumo, passeia a régua sobre o mapa. - Etapas nem curtas nem longas, outra légua e outra hora, e assim até ao fim. Vinte ou vinte e cinco quilómetros por dia já é uma boa marcha; é passar as manhãs no caminho. Depois, sobre o terreno, todos estes projectos caem em saco roto e as coisas saem, como sempre acontece, como podem. Procura umas notas, consulta uma cadernetazita, folheia uma velha geografia, estende sobre a mesa um plano da região. - Sim; sem dúvida alguma, as regiões naturais. Os rios unem e as montanhas separam, é a velha sabedoria: não há outra divisão que valha». In Camilo José Cela, Vagabundo al Servício de España, 1948, Vagabundo ao Serviço de Espanha, Edições ASA, Porto, 1995, ISBN 972-41-1607-7.

Cortesia de ASA/JDACT