sexta-feira, 30 de maio de 2014

O Maravilhoso e o Quotidiano no Ocidente Medieval Jacques le Goff. «Uma outra fronteira do maravilhoso é o maravilhoso político. Os chefes sociais e políticos da Idade Média utilizaram o maravilhoso para fins políticos. Trata-se da recuperação do maravilhoso, mas de uma forma extrema»

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O Maravilhoso no Ocidente Medieval
«(…) É por exemplo o caso de dois sectores que me parecem mais característicos da Idade Média que de outras épocas: o maravilhoso quotidiano e o maravilhoso político. As manifestações do maravilhoso parecem muitas vezes sem ligação com a realidade quotidiana mas revelam-se dentro dela (um elemento que será redescoberto por vezes pelo fantástico romântico ou pelo surrealismo moderno). Se continua a haver o movimento de admiração dos olhos que se arregalam, a pupila dilata-se cada vez menos e este maravilhoso, conservando embora o seu carácter vivido de imprevisibilidade, não parece particularmente extraordinário. Interessante um exemplum de Cesário de Heisterbach, no Dialogus Miraculorum (início do século XIII). Um jovem nobre, converso cisterciense, está a guardar carneiros reunidos numa eira da abadia cisterciense a que pertence, quando vê aparecer diante de si um primo recentemente falecido. Com toda a tranquilidade, pergunta-lhe: Que fazes aqui? E o outro, em resposta: Morri, vim para dizer que estou no Purgatório e é preciso que rezeis por mim. Faremos o que é necessário. O defunto afasta-se assim no prado e desaparece no horizonte como se fizesse parte da paisagem natural, sem que o mundo se mostre minimamente perturbado por esta aparição. Nos Otia Imperialia, um texto um pouco anterior mas ainda do início do século XIII, entre as numerosíssimas anotações de mirabilia, o autor Gervásio de Tilbury conta que nas cidades do vale do há seres maléficos, os dragões, que agridem as crianças, mas não são, salvo excepções, os tradicionais papões. Introduzem-se de noite nas casas, com as portas fechadas, tiram as crianças dos berços e levam-nas para a rua ou para as praças, onde são encontradas no dia seguinte de manhã, tendo-se mantido as portas fechadas durante todo este tempo. Os vestígios da passagem dos dragões são quase imperceptíveis, o maravilhoso perturba o menos possível a regularidade quotidiana; e provavelmente é exactamente este o dado mais inquietante do maravilhoso medieval, ou seja, o facto de ninguém se interrogar sobre a sua presença, que não tem ligação com o quotidiano e está, no entanto, totalmente inserida nele.
Uma outra fronteira do maravilhoso é o maravilhoso político. Os chefes sociais e políticos da Idade Média utilizaram o maravilhoso para fins políticos. Trata-se de uma forma de recuperação do maravilhoso, mas de uma forma extrema. É sabido e quase normal, óbvio, que as dinastias reais procuraram forjar para si origens míticas. Famílias nobres e cidades imitaram-nas. Mas o mais surpreendente é que essas origens míticas estão radicadas por vezes, e não frequentemente, num maravilhoso inquietante e ambíguo. É muito conhecida a história de Mélusine, a maravilhosa mulher medieval, provavelmente avatar de uma deusa-mãe, de uma deusa da fecundidade, reivindicada como antepassada, como uma espécie de totem, por diversas famílias nobres. Uma delas conseguiu-o, a dos Lusignani, que se apoderaram de Mélusine, deram-lhe o seu nome, vista que Mélusine não é nomeada antes da altura em que se une, ousaria dizer, com os Lusignani. Assim, o maravilhoso torna-se instrumento de política e de poder. O exemplo mais belo deste maravilhoso político ambíguo encontramo-lo em Geraldo de Cambrai (Geraldo de Barri), no início do século XIII. Trata-se da ascendência melusiana dos Plantagenetas, que se tornaram reis de Inglaterra. A dinastia dos Plantagenetas, segundo Geraldo, teria tido como antepassada, no século XI, uma mulher-demónio, e por outros testemunhos sabemos que essa lenda era bem conhecida e que Ricardo, Coração de Leão, lhe fazia referência e se servia dela na sua acção política para explicar o modo, muitas vezes desconcertante, de se comportar, para justificar os aspectos por vezes extravagantes das suas opções e daquilo que acontecia naquela família bastante escandalosa, em que nomeadamente os filhos se armavam contra o pai e se combatiam incessantemente. Ricardo gostava de dizer: Nós, filhos da mulher-demónio... Uma coisa menos conhecida, em contrapartida, é o facto de Filipe Augusto ter procurado utilizar este mito das origens maravilhosas contra os Plantagenetas, sobretudo contra João Sem Terra; e em particular quando preparou o falhado desembarque do filho Luís em Inglaterra, montou uma autêntica campanha psicológica em que os emissários e os partidários dos Franceses diziam que era preciso acabar com os filhos da mulher-demónio». In Jacques le Goff, Il meraviglioso e il quotidiano nell’occidente medievale, Gius, Laterza, 1983, Roma, O maravilhoso e o quotidiano no ocidente medieval, Edições 70, Lisboa, 2010, ISBN 978-972-44-1563-5.

Cortesia de E70/JDACT