sábado, 17 de maio de 2014

Menina e Moça. O seu mau signo. De Meca a Freixo de Espada à Cinta. Aquilino. «A edição de Évora, com efeito, fala dos ‘traduzidores’ que teriam metido colherada na obra, e da necessidade por consequência ‘de pô-la a limpo’, e os Usques na edição ‘princeps’ o dizem»

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Menina e Moça e o seu mau signo
«(…) Do exame da Consolação e da Menina e Moça salta à vista que o compositor teria sido o mesmo. Também semelhante circunstância se esclarece, admitindo a hipótese do seu conhecimento unilateral quanto a línguas neo-românicas, conjugado com a necessidade de ganhar a vida, o culto das coisas portuguesas e a saudade do passado. O enliçamento que prende o espírito ao entrecho da novela actuaria não menos no sentido de se dar à estampa uma obra tão longe da terra que a produzira e onde poderia encontrar público remunerador. Atente-se para o prefácio da Consolação em que Samuel Usque declara oferecer aos judeus desterrados, nostálgicos da terra mãe de que eram barbaramente esbulhados, por muitos meios e longo rodeio algum alívio aos trabalhos. Cotejando os textos e observando as analogias gráficas, reconhece-se que não se trata apenas de trabalhos saídos da mesma oficina, mas de trabalhos obedientes porventura a idêntica inspiração e executados pelo mesmo artífice.
O facto de esta estampa da Consolação não ser citada no Catálogo dos livros proibidos de 1581, versando matéria de apologética, atribui-a Mendes dos Remédios à sua raridade, no que concordamos, supondo que fosse intuito do autor introduzi-la em Portugal. Já a Menina e Moça, figura no rol em questão, não se sabe bem por que pecadilhos, se aqueles de que se falou acima, se os implícitos nas frases expungidas na edição de 1645. Depois dos estudos exaustivos de Teófilo Braga, Carolina Michaëlis, Delfim Guimarães, Marques Braga, António Salgado Júnior e Fraülein Grokenberger acerca da obra e personalidade de Bernardim, tudo o que se diga e não venha escudado de documentos novos terá que ser inevitavelmente acessório e circunstancial. Aqui e além poderá dissentir-se do pormenor conducente a conceitos menos proporcionados e juízos tantas vezes temerários, que será necessário ajustar, mas na generalidade os trabalhos em questão, considerados no seu enxamblamento sinóptico, constituem uma obra de exegese literária, admirável sem dúvida e única na nossa língua. Para nós só têm um defeito, o de representarem um esforço que supera de muito o valor da obra estudada. A meu ver poderia aplicar-se-lhes o rifão: vale mais o molho do que o polho. Dentre eles, é de consciência que se distinga o duplo estudo de Teófilo, o grande desbravador do assunto com a sua imaginação culta, ousada e criadora, se bem que muitas vezes susceptível de revisão, o estudo de Carolina Michaëlis, dum saber vasto e probo, com o sentido raro, penetrantíssimo da ilação, servido por um génio meticuloso e porfiado, finalmente o estudo de Salgado Júnior, com a sua análise ampla, multiangular, em que se discerne um espéculo, tão diligente como perspicaz, a esquadrinhar o recôndito das coisas indefinidas e subtis.
Tudo o que a razão, pelos processos do método indutivo, pode edificar acerca da Menina e Moça encontra-se circunscrito nas citadas páginas. A dificuldade está em se abrir caminho através delas, intrincada floresta de factos pressupostos e de argumentos, muitos deles da mais sagaz inventiva. Mas uma vez feita a clareira necessária e referenciada a posição, sucede-nos perguntar, como aqueles portugueses que suportaram mil trabalhos até chegar ao Preste João, um negralhaz boçal, insignificante em tudo, outro que não aquele que, graças à distância ou à transposição, se coloria de maravilhosas tintas de ludíbrio: Valeu a pena? A nosso ver, a Menina e Moça é uma especulação de paranóico, lançada corrente calamo, se não de jacto, ao papel. Testemunham-no o seu estilo primário, as incoerências e tom de solilóquio lunático, arroubos líricos pueris, e as infinitas variações centrífugas, abstraindo ainda das emendas, rasuras, remissões que o texto devia sofrer dos diferentes copistas, que, por bem, nunca deixavam de trazer de sua casa. A edição de Évora, com efeito, fala dos traduzidores que teriam metido colherada na obra, e da necessidade por consequência de pô-la a limpo, e os Usques na edição princeps o dizem: com suma diligência emendada. Carolina Michaëlis interpreta semelhante reparo no sentido da corrigenda tipográfica com o propósito de garantirem uma fiel e exacta reprodução, o que seria supérfluo dizê-lo, apenas se justificando se se tratasse de obra reeditada. Para nós, trata-se da corrigenda do texto, em face de traslado que a eles, competentíssimos homens de letras, não satisfizera. E tanto assim que a Consolação às Tribulações de Israel, composta pelo irmão Samuel e impressa um ano antes na mesma oficina, não vem acompanhada da admonenda». In Aquilino Ribeiro, De Meca a Freixo de Espada à Cinta, Ensaios Ocasionais, Menina e Moça e o seu mau signo, Livraria Bertrand, Lisboa, 1960.

Cortesia de LBertrand/JDACT