domingo, 18 de maio de 2014

História da Europa Medieval. Papa Negro. Ernesto Mezzabota. «Aquele convertido não tinha mudado nada quanto ao fundo do coração. Era sempre o arcanjo fulminado, que levantava orgulhosamente a fronte para o céu, vencido mas não abatido pelo raio de Deus…»

Cortesia de wikipedia

Inácio de Loiola
«(…) Durante a minha doença, quis o Senhor que me viesse o desejo de ler, e pedi que me trouxessem romances de cavalaria. A Providência determinou que em vez desses livros me viessem às mãos a Vida de Jesus Cristo e Fios Sanctorum. Li-os, ao princípio com repugnância, depois com prazer e afinal com entusiasmo. Quando a minha perna estava curada, bem outro era também o estado do meu espírito: eu já não era um galanteador vaidoso, um soldado sanguinário. Era um cristão. Aquela narrativa, que hoje em dia enfastiaria soberanamente qualquer auditório, por menos ilustrado que fosse, era, pelo contrário, escutada por aquela assembleia com uma atenção sincera e quase febril. Com efeito, naquele tempo ninguém olhava com indiferença as coisas da religião. O grande movimento, que se produzira na Alemanha, suprimira os indiferentes e dividira-os todos em duas classes bem distintas: uma, que era constituída pelos que respeitavam e obedeciam à Igreja romana, confessando-se seus campeões; outra, que era formada pelos que se apresentavam para abalar as bases do edifício do pontificado, fazendo ruir com ele todas as velhas instituições que tinham o apoio e consagração da Igreja.
Ser indiferente naqueles tempos aos assuntos religiosos seria tão impossível como nos ditosos dias de 1848 conservar-se estranho aos movimentos políticos. Era preciso tomar-se parte naqueles ou nestes; ser por Lutero ou por Clemente, pela autoridade eclesiástica, ou pela liberdade do pensamento. De uma e outra parte, a fé estava de tal modo sobre-excitada, que nenhuma força humana poderia impedir que as discussões fossem tempestuosas, violentas e irreprimíveis. Como acontecera nos primeiros tempos do Cristianismo, o apostolado fazia-se à custa do martírio. Paris, Madrid, Roma, queimavam os protestantes; Londres e Genebra perseguiam e destruíam os católicos. E por isso aquela narrativa ascética de Loiola correspondia tão exactamente às preocupações da ocasião, às agonias daquelas mudanças constantes, que todos seguiam a manifestação daquele sentimento religioso com o mesmo interesse que hoje despertaria o mais comovente drama de ambições ou de amor. - Continua!... Continua!..., gritaram de todos os lados. Inácio de Loiola sentia que todos os olhares o fitavam com viva atenção; e a única paixão que o dominava, a de se impôr aos outros, quer fosse pela admiração quer pelo medo, achava-se assim completamente satisfeita nele.
Aquele convertido não tinha mudado nada quanto ao fundo do coração. Era sempre o arcanjo fulminado, que levantava orgulhosamente a fronte para o céu, vencido mas não abatido pelo raio de Deus: a sua ambição, assim tão duramente desviada dos esplendores mundanos, tinha mudado de direcção, mas nem por isso tinha diminuído. Quando eu senti que a graça divina despertava em mim os sentimentos adormecidos, prosseguiu com voz mais segura o peregrino, voltei-me para a Virgem, e diante do altar dela fiz voto de castidade. Depois resolvi fazer a vigília de armas, que tem de fazer todo o cavaleiro, antes que possa cingir o sagrado cinto da ordem. Uma noite inteira passei diante do altar, orando, chorando, consagrando-me todo à milícia de Cristo. No dia seguinte pendurei a minha espada num pilar da igreja, dei a um pobre os meus trajes de cavaleiro, cingi o corpo com uma corda, vesti-me de burel, e dirigi-me a pé para Manresa. Que mais vos direi, meus irmãos? Amparado por uma fé sobre-humana, castiguei o corpo com mil penas e tormentos; infligi-me as mais cruéis privações, sem que nada pudesse alterar a minha saúde de ferro. Cingi os rins de cilícios; dormi na terra fria, mendiguei de porta em porta, e julgava-me feliz quando recebia mau tratos ou injúrias, que vinham aumentar o valor da minha expiação.
Finalmente, a seiscentos passos de Manresa encontrei uma gruta oculta a todos os olhares. Foi essa que eu escolhi para minha habitação; aí recebi os tormentos e as privações como um favor do céu; aí experimentei as doçuras do êxtase divino e o langor da morte aparente. Enfim, meus irmãos, foi aí que... Neste ponto Inácio fez uma pausa, como quem se assustava que ia dizer. - Fala, fala!, gritaram de todos os lados. Pois bem, prosseguiu o peregrino, fazendo um grande forço, foi aí que me apareceram os anjos do Senhor e que ensinaram a maneira de guiar os homens e de os conduzir à fé obediência, ao caminho do céu. Os preceitos que eles me ensinaram, meus irmãos, escrevi-os, e tenho-os aqui, e Loiola mostrou folhas que tinha ao lado. Com estes Exercícios espirituais, escrevi enquanto os anjos mos ditavam, encontrei o modo de reduzir à submissão as almas mais rebeldes, e de fazer com que elas sejam nas mãos do seu director espiritual como um cadáver nas mãos do cirurgião. Estas palavras resumiam em si a terrível doutrina da Companhia de Jesus, que Inácio de Loiola devia fundar. Perinde ac cadáver, como um cadáver, tal é a forma de obediência imposta aos jesuítas». In Ernesto Mezzabota, O Papa Negro, História da Europa Medieval e seus costumes, tempo da narrativa; entre 1500 -70 d. C, 1848, Rio de Janeiro, 1947, corrigido por Milton Barros Carvalho, Brasil, 2009.

Cortesia de Wikipedia/JDACT