sexta-feira, 23 de maio de 2014

Guerra. Diplomacia e mapas. A guerra da Sucessão Espanhola. Júnia F. Furtado. «O exame dos mapas produzidos por D’Anville e alguns pertencentes à sua colecção revelam que a questão era complexa e podia suscitar diversas interpretações. Num primeiro manuscrito intitulado ‘Carte huilée des embouchures de la rivière des Amazones et côtes voisines’…»

Carta de D’Anville de 1748
Cortesia de wikipedia

Guerra e diplomacia
«(…) Mapas eram importantes não só no teatro da guerra, mas no contexto das negociações diplomáticas que se seguiam a elas. Nesse aspecto, o Congresso de Utrecht (1712-1715) ocupou um ponto de inflexão decisivo no uso da cartografia como instrumento de persuasão política. Em Utrecht, esse novo uso da cartografia em conjunto com documentos e relatos foi experimentado primeiramente pelos ingleses, quando estes, em Dezembro de 1712, foram negociar com os franceses as terras em disputa na América do Norte. As ordens que os embaixadores franceses dispunham sobre quais territórios poderiam ser cedidos eram vagas e imprecisas, pois a instrução não fala nada dos limites que devem dividir por terra a Nova França de um lado, e as possessões inglesas de outro. Isso os colocou em desvantagem frente aos ingleses que, por sua vez, chegaram muito bem preparados, munidos de vários documentos, inclusive mapas. Para negociar, as duas delegações se basearam então numa carta que representava a Nova França, na América setentrional, comunicada pelos ingleses, e na qual eles mesmos tinham traçado, com uma linha rosa, as bordas dos dois estados que eles pretendiam estabelecer desde as margens das terras de Labrador, a leste, até a costa do continente em direção oeste. Os franceses informaram ao rei que, se fosse da sua vontade, a rainha da Inglaterra disponibilizaria o mesmo mapa aos franceses para estes ali traçarem uma outra linha de cor diferente, que marque distintamente o terreno que nós devemos conservar. Note-se aí, novamente, desta feita inserida no contexto do jogo diplomático, a utilização de raias coloridas para apontar os limites pretendidos por ambas as Coroas. Pouco depois de terminadas as negociações entre ingleses e franceses, no início de 1713, chegou a vez dos últimos iniciarem as suas negociações com os portugueses. A posição de Portugal sobre as terras em disputa entre as duas coroas no norte do Brasil era de que a ele pertencia por direito todas as terras do Cabo do Norte, situadas entre o Amazonas e o rio de Vicente Pinzón, ou Oiapoque, e que a possessão dessas terras dava-lhe o direito exclusivo à navegação do rio Amazonas. Aos franceses caberia apenas o território ao norte do Oiapoque, ficando-lhes vedada a navegação do Amazonas. Os franceses, por seu turno, arguiam a dificuldade de identificar exactamente a localização exacta desses acidentes geográficos.
O exame dos mapas produzidos por D’Anville e alguns pertencentes à sua colecção revelam que a questão era complexa e podia suscitar diversas interpretações. Num primeiro manuscrito, de sua autoria, intitulado Carte huilée des embouchures de la rivière des Amazones et côtes voisines, sem datação segura, mas que tudo indica tratar-se de cópia de um mapa português, pode-se ver claramente que o cartógrafo não utiliza como referencial para a demarcação dos limites o Cabo do Norte, mais ao sul, mas, a baía de Vicente Pinzón, mais ao norte; ambos são pontos geográficos distintos no mapa, o que aumenta a possessão portuguesa na área, cuja posse se justifica pela existência de um forte que tomamos dos holandeses, conforme aparece gravado no mapa. Uma comparação dessa mesma carta com a Carte particuliere du cours de la rivière des Amazones ou de Maragnon, de 1729, desenhada por D’Anville a partir de esboço do padre jesuíta Ignácio Reys, revela as dificuldades em relação à geografia local. Nela, o Cabo do Norte, a ilha de Carpori e a baía de Vicente Pinson (sic) são posicionadas no mesmo local. Observa-se que o cartógrafo representa os fortes portugueses da região, ainda que alguns, por essa época, ainda permanecessem em ruínas, como era o caso do Forte do Desterro ou do Exílio, demolidos pelos franceses no contexto da Guerra da Sucessão Espanhola. Fica claro assim que ambos os mapas apresentam os acidentes geográficos que norteariam a linha divisória de formas distintas: na primeira, há uma separação entre, de um lado, a ilha e o cabo, posicionados mais ao sul e, de outro, a baía situada mais ao norte; na segunda, todos são coincidentes. Robert Dudley na sua Carte de l’embouchure de l’Amazone, separa a baía do cabo, mas não representa essa ilha. Qualquer dessas soluções teriam implicações evidentes no território pretendido pelos portugueses. Ilustrativa é uma das versões impressas da Carte de l’Amérique meridionále, de D’Anville, de 1748, onde, sobre ela, gravou, em vermelho, três possíveis localizações da baía de Vicente Pinzón, sendo que a adoção de qualquer uma delas teria impacto na demarcação da fronteira entre as duas coroas. A primeira identifica a baía com o cabo de Orange, onde se localiza a foz do rio Oiapoc; a segunda, com a ilha de Muracá mais ao sul; e a terceira, com o Cabo do Norte um pouco mais ao sul da anterior. A última opção, a menos desastrosa para os franceses, acabou sendo a utilizada na versão impressa do mapa, sendo que, na versão manuscrita da carta, D’Anville ensaiou os dois últimos posicionamentos da linha de limites». In Júnia Ferreira Furtado, Guerra, Diplomacia e mapas, A guerra da Sucessão Espanhola, O Tratado de Utrecht e a América Portuguesa na cartografia de D’Anville, revista Topoi, v,. 12, nº 23, 2011.

Cortesia de Topoi/JDACT