quinta-feira, 8 de maio de 2014

A Heteronímia de Pessoa. Ensaio. Mário Saraiva. «Caminhávamos, juntos e separados, entre os desvios bruscos da floresta. Nossos passos, que era o alheio de nós, iam unidos, porque uníssonos… Mas iam também disjuntos porque éramos dois pensamentos, nem havia entre nós de comum senão que o que não éramos pisava uníssono o mesmo solo ouvido»

jdact e wikipedia

«Para a imensidade dos literatos pessoanos o mais difícil e intrigante problema continua a ser o dos heterónimos. E isto apenas acontece pela ignorância de um dado fundamental: por o considerarem um fenómeno puramente literário, quando ele é essencialmente de natureza médica. E o que se tem escrito e imaginado sobre isto, do mais fantasioso ao mais absurdo! Todavia o diagnóstico esclarecedor está feito: Fernando Pessoa sofria de esquizofrenia, e nesta realidade está a causa da heteronímia. Quem porventura não conheceu algum desses infelizes tomados por almas penadas que (e mais frequentemente nos estratos sociais inferiores), levam a vida entre bruxas e exorcistas? São casos vulgares na clínica, atormentadores de pessoas e de famílias em que os doentes se queixam de albergarem espíritos alheios que rivalizam com o seu próprio espírito, levando-os a atitudes estranhas e versáteis, desfigurantes de suposta personalidade. Estes casos também sucedem na literatura quando o atingido tem vocação de escritor e não se prende em ocultar a circunstância. Um acontecimento notório desta espécie deu-se, precisamente, com Fernando Pessoa que foi, de entre todos os revelados, não só no panorama português como no europeu, o que mais se evidenciou, mercê da franca sinceridade das suas confissões e da legião entusiasta dos seus panegiristas.
A cisão em dois pertence à fase sintomática inicial da esquizofrenia. Pessoa começa por acusar essas queixas, que levam à aparência de dupla personalidade; mas na realidade patológica o significado é o de duas partes desintegradas do todo, desfrutando de uma certa autonomia e predominância, e que se alternam na condição mental cada um de nós é dois. E no Livro do Desassossego, lê-se: Ninguém supôs que ao pé de mim estivesse sempre outro, que afinal era eu. Julgaram-me sempre idêntico a mim. E adiante repete: Sou dois, e ambos têm a distância, irmãos siameses que não estão pegados. Num devaneio relata-nos, a seu modo vago, mas expressivo, a percepção desse anómalo estado de duplicidade psíquica: Caminhávamos, juntos e separados, entre os desvios bruscos da floresta. Nossos passos, que era o alheio de nós, iam unidos, porque uníssonos… Mas iam também disjuntos porque éramos dois pensamentos, nem havia entre nós de comum senão que o que não éramos pisava uníssono o mesmo solo ouvido. […] Nenhum de nós queria saber do outro, porém nenhum de nós sem ele prosseguiria. [...] Quem éramos? Seríamos dois ou duas formas de um?
Esta interrogação é o sinal de passagem da inicial duplicidade à mais perturbante multiplicidade mental. Cada um de nós é vários, é muitos, é uma prolixidade de si mesmo; Tenho mais almas que uma / Há mais eus do que eu mesmo. Vivem em nós inúmeros (Odes de Ricardo Reis). E daqui em diante com o fraccionamento cerebral a acentuar-se, tudo se vai complicar num desassossego e numa desorientação crescentes que o poeta estampa nos seus versos pungentes:

E como são estilhaços
do ser, as coisas dispersas
quebro a alma em pedaços
e em pessoas diversas.
In Poesia II

Repare-se desde já na expressão que quer dizer a alma dividida em pessoas diversas. O que é esta, senão a demonstração da origem patológica dos heterónimos? Porém, não nos fiquemos de momento na interpretação. Voltemos ao Livro do Desassossego I que, repito, deverá ler-se em voz alta, como uma história clínica, o que na verdade é, e por isso o interesse, ou curiosidade, que desperta a sua leitura. A patografia deste género foi sempre atraente. E então ouviremos o autor gritar, aflitivamente: Meu Deus, meu Deus, a quem assisto? Quantos sou? Quem é eu? O que é este intervalo que há entre mim e mim? E tudo se me confunde num labirinto onde, comigo, me extravio de mim.
Tudo se me evapora. A minha vida inteira, as minhas recordações, a minha imaginação e o que contém, a minha personalidade, tudo se me evapora. Continuamente sinto que fui outro, que senti outro, que pensei outro. Aquilo a que assisto é um espectáculo com outro cenário. E aquilo a que assisto sou eu». In Mário Saraiva, A Heteronímia de Pessoa, Brotéria Cultura e Informação, volume 138, 1994.

Cortesia Brotéria/JDACT