sábado, 31 de maio de 2014

Jazz no 31. Russell e Young. «A referência poética ao existir ‘suspensa de mundos cintilantes pelas veias’, numa leitura possível, parece-nos conduzir para o estado pletórico dos órgãos, no momento da conexão erótica. Poder de sedução, como as sereias, e o erotismo é requerido pela amante»

Beco do Castelo, Lisboa
Cortesia de wikipedia


A exaltação da pele
«Hoje quero com a violência da dádiva interdita.
Sem lírios e sem lagos
e sem gesto vago
desprendido da mão que um sonho agita.
Existe a seiva. Existe o instinto. E existe eu
suspensa de mundos cintilantes pelas veias
metade fêmea metade mar como as sereias».


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Guerreiros no 31. Geraldo Geraldes. “O Sem-Pavor”. «… a vigia muçulmana dormia, encostava as escadas à muralha e era o primeiro a subir ao castelo e, empolgando o vigia, dizia-lhe: “Grita como tens por costume de noite, que não há novidade”. E então os seus homens de armas subiam acima dos muros da cidade, davam na sua língua um grito imenso…»

Cortesia de wikipedia

O assalto a Beja
«(…) Ao abrigo da escuridão nocturna, os combatentes portugueses terão, pois, penetrado furtivamente no sistema defensivo da urbe, surpreendendo a guarnição local, que mal terá tido tempo para esboçar uma reacção. Em poucas horas a velha cidade convertia-se na mais meridional das praças-fortes dominadas por Afonso Henriques, o pérfido galego, senhor de Coimbra, o maldito de Deus, como lhe chama o cronista Ibn Sahib al-Sala, que relata este episódio. Porém, nos objectivos do rei, que certamente terá participado no planeamento da expedição, não estaria a submissão definitiva de um local tão afastado da fronteira. Dominá-lo sim, mas apenas de forma temporária, ou seja, enquanto pudesse ser usado como base de operações para as razias lançadas contra o território circundante. Com efeito, durante cerca de quatro meses, ou seja, ao longo do Inverno e das primeiras semanas da Primavera seguinte, os conquistadores permaneceram no local, utilizando-o como centro operacional para a devastação sistemática de toda a região. Porém, isolada e demasiado afastada das principais fortalezas dominadas pelos portugueses, seria apenas uma questão de tempo até que Beja voltasse a ser controlada pelos muçulmanos. Assim, logo que as condições meteorológicas o permitiram e sem que isso constituísse uma qualquer surpresa para os que haviam participado na expedição, a cidade é reduzida a ruínas e abandonada.
É precisamente em alguns dos textos que relatam a conquista de Beja que parecem surgir, ainda que apenas nas entrelinhas, as primeiras referências a Geraldo Geraldes. De facto, a descrição que o cronista Ibn Sahib al-Sala faz das tácticas usadas pel’O Sem-Pavor para conquistar boa parte das fortalezas que, mais tarde, conseguiu dominar antecede, quase que em jeito de introdução para o que se segue, a notícia relativa à tomada de Beja. É precisamente esta sequência narrativa que tem levado a maior parte dos estudiosos a aventar, ainda que com algumas reservas, a possibilidade de Geraldo ter participado nessa operação, conduzida, tudo o indica, de acordo com aquele que viria a tornar-se o seu modus operandi, o que parece reforçar ainda mais essa hipótese. Diz-nos aquele cronista que o pensamento constante de Geraldo era tomar por surpresa as cidades e os castelos só com a sua gente: ele tinha os muçulmanos da fronteira sob o terror das suas armas. Procedia assim: avançava sem ser apercebido na noite chuvosa, escura, tenebrosa e, insensível ao vento e à neve, ia contra as cidades inimigas. Para isso levava escadas de madeira de grande comprimento, de modo que com elas subisse acima das muralhas da cidade que procurava surpreender; e quando a vigia muçulmana dormia, encostava as escadas à muralha e era o primeiro a subir ao castelo e, empolgando o vigia, dizia-lhe: Grita como tens por costume de noite, que não há novidade. E então os seus homens de armas subiam acima dos muros da cidade, davam na sua língua um grito imenso e, execrando, penetravam na cidade, matavam quantos moradores encontravam, despojavam-nos, e levavam todos os cativos e presas que estavam nela.
Rápido, eficaz e sem que para isso fosse necessária a mobilização de grandes meios humanos ou logísticos. Claro está que este método não era um exclusivo de Geraldo, tendo sido já posto em prática noutras ocasiões, como, por exemplo, em 1147, contra Santarém. Nesse sentido, a circunstância de ter sido usado na conquista de Beja não é necessariamente uma prova da participação do caudilho na expedição de 1162. Ainda assim, as dúvidas e as incertezas persistem. Porém, é depois desta data que as fontes narrativas começam a fornecer-nos informações realmente seguras a respeito das suas acções armadas.

Os primeiros sucessos
E será de acordo com o método descrito por Ibn Sahib al-Sala que, ao comando do seu exército privado, O Sem-Pavor logrará apossar-se, num curto espaço de tempo, de um impressionante conjunto de fortalezas situadas a leste do eixo Évora-Beja e em torno de Badajoz, ao longo de ambas as margens do Guadiana. E inicia essa sequência de triunfos com o imponente castelo de Trujillo, conquistado no dia 15 de Abril de 1165 através de uma operação furtiva conduzida, como viria a tornar-se habitual, durante a noite. Todavia, se porventura o inimigo esperava que a ofensiva tivesse sequência naquela mesma região, rapidamente percebeu que estava errado, quando, em Setembro desse mesmo ano, foi surpreendido pela notícia do bem sucedido assalto a Évora, o segundo mais importante núcleo urbano da província muçulmana de Badajoz. O choque, entre os comandantes militares do al-Andalus, deve ter sido enorme». In Miguel Gomes Martins, Guerreiros Medievais Portugueses, A Esfera dos Livros, Lisboa, 2013, ISBN 978-989-626-486-4.

Cortesia Esfera dos Livros/JDACT

Cruzadas no 31. Origem das Cruzadas 1095-1119. José Luís Corral. «Con el islam fue diferente. Superiores en cultura y en formas de civilización al haber sabido sintetizar y aprender las aportaciones culturales de los imperios conquistados, los musulmanes mantuvieron sus postulados religiosos y su identidade»

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O Despertar da Europa
«A la caída del Imperio romano a fines del siglo V, la Europa meridional y el mundo mediterráneo se descompusieron en numerosos Estados que fueron gobernados por las castas militares dirigentes de los invasores germánicos. Del viejo Imperio sólo quedó la mitad oriental, el llamado Imperio bizantino, que com diversas y variables fronteras subsistió hasta 1453. A lo largo de la segunda mitad del siglo VII una nueva fuerza no prevista hasta entonces hizo una fulgurante aparición en el escenario del Oriente Próximo y del norte de África. Se trataba del islam, que construyó un gran imperio desde la India hasta los Pirineos en apenas un siglo. La Europa occidental de la Alta Edad Media, fruto de la mezcla desigual y heterogénea de los restos de la cultura romana, las aportaciones germánicas y la religión cristiana, fue acosada entre los siglos VII y X por amenazas considerables. Por el sur, el islam avanzó hasta el mismo corazón de Europa; los musulmanes conquistaron casi toda la península Ibérica, buena parte del sur de Francia, la mayoría de las islas del Mediterráneo occidental y asentaron algunas bases estratégicas en el sur de Italia y en la costa mediterránea francesa. Algunas razias llevaron a los jinetes musulmanes hasta los valles alpinos. Pero el avance, hasta entonces incontenible, se frenó a mediados del siglo VII a causa sobre todo de los enfrentamientos internos entre diversas facciones religiosas y políticas, que provocaron el cisma y la desmembración en el que durante un siglo había sido un imperio unificado y pujante.
A la amenaza musulmana por el sur, se sumaron por el norte y el oeste las invasiones de los llamados pueblos del norte, los temidos vikingos o normandos. Estos germanos del norte asolaron entre fines del siglo VII y fines del X las costas atlánticas europeas y las islas y las regiones meridionales del mar Báltico. En su afán explorador en busca de botín, penetraron en el Mediterráneo, llegaron a crear un reino en Sicilia y comerciaron con los pueblos eslavos de Rusia instalando factorías comerciales a lo largo de los cursos de los grandes ríos de Europa oriental. Tan temidos, o más incluso, que los musulmanes, los normandos fundaron importantes principados, como el ducado de Normandía, en el noroeste de Francia, o el Danelaw, en el norte de Inglaterra.
Por fin, a principios del siglo X, en plena descomposición del Imperio carolíngio, el único intento de reconstrucción europea, pero que sólo fructificó entre los años 778 y 843, hicieron su aparición los magiares o húngaros, un pueblo procedente de la profundidad de las estepas euroasiáticas que asoló las regiones orientales de la cristiandad hasta que en el año 951 fue detenido por el emperador Otón I en la batalla de Lechfeld. Así, tras las invasiones germánicas que certificaron la agonía y muerte del Imperio romano de Occidente en el año 476, Europa atravesó una largo período de cinco siglos en los que, a pesar de esfuerzos efímeros (como el realizado por el emperador Carlomagno), se vio amenazada desde todos los flancos y en todas las regiones por enemigos poderosísimos, algunos de ellos paganos, como los normandos y los magiares, o los seguidores de otras religiones con ansias universales, como los musulmanes. Acosada desde todos los flancos, la civilización surgida en Europa occidental tras la caída de Roma parecía abocada a su fin; pero, contra todo pronóstico, sobrevivió.
Durante ese medio milenio los reinos de la cristiandad occidental resistieron todos los envites, mantuvieron sus creencias cristianas y lograron imponer su cultura y su religión a normandos y magiares, que acabaron convirtiéndose al cristianismo a fines del siglo X y asumiendo sus modos políticos y sociales. Con el islam fue diferente. Superiores en cultura y en formas de civilización al haber sabido sintetizar y aprender las aportaciones culturales de los imperios conquistados, los musulmanes mantuvieron sus postulados religiosos y su identidad. La falta de unidad del islam, la pérdida de su impulso fundacional y la lenta recuperación, a la vez que la voluntad de resistencia, de los pequeños reinos cristianos de la península Ibérica dieron lugar a un largo período de estabilidad de fronteras con el mundo cristiano que se concretó en una línea estable y sólida que desde el valle del Duero atravesaba toda la Península hasta el piedemonte del Pirineo y de allí a las islas Baleares y Sicilia, y más allá del Mediterráneo al sur de Anatolia y a Armenia. Y así se mantuvo desde mediados del siglo VIII hasta mediados del siglo XI». In José Luís Corral, Breve História de la Orden del Temple, Ensayo Edhasa, 2006, ISBN 978-84-350-2684-0.

Cortesia de Edhasa/JDACT

Romance e Teatro no 31. Aventuras d’O marquês de Mântua. Maria Idalina Rodrigues. «… adiantando sobre eles alguns esclarecimentos que os arrumem no corpus, de que sirvam de testemunho à sua dupla identidade, de expressão e de conteúdo. São, romances protagonizados...»

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Teatro de Portugal e de Espanha
Num tempo de saudável rotação e de descrédito de velhos travões no andamento dos estudos literários, em que, com o assentimento dos críticos e a atenção interessada de muitos investigadores, justamente crescem e se celebram, entre nós, os trabalhos sobre Literatura oral e tradicional e, em especial, sobre o Romanceiro ibérico, não deixa talvez de ser prudente avisar à partida o descuidado leitor deste escrito daquilo que nele por certo não encontrará. Ou seja, preveni-lo honestamente de que o envolvimento com os velhos relatos lírico-dramáticos não avaliza, neste caso, um entendido na sedutora rede de definições, normas de estrutura ou de discurso, rotas antigas e actuais do romance peninsular; recomenda apenas, e muito mais modestamente, outro leitor, agradado do teatro peninsular dos séculos XVI e XVII, com certa prática e muito comprazimento no ajustar dos textos espanhóis e portugueses, não raro com antepassados comuns, que recuam, por sinal, até ao Romanceiro luso-espanhol. Aliás, a travessia pelos romances dos dramaturgos ibéricos, particularmente dos da vizinha Espanha, foi tão larga que valeria bem a pena levar mais longe o que já está feito no sentido de separar trigo e joio nessa vasta seara das letras. Temos, de resto, pioneiros que clamam por continuadores: Carolina Michaëlis, por exemplo, avançou oportunamente um rol bastante significativo de embrechamentos e aproximações.
Na esperança de estudo alheio de maior fôlego, vão entretanto os afeiçoados, a esta temática dos cruzamentos e contaminações entre romance e teatro, diversificando as achegas em áreas parciais, em busca da possível concertação final. Foi a dentro destes parâmetros que me aventurei a acudir de perto, e a título mais apelativo que metodologicamente rigoroso, às andanças de certos heróis de uma história antiga, aquela que, nascida e alimentada na fértil floresta de intrigas da corte carolíngia, conta a morte de Valdovinos por Carloto, filho de Carlos Magno, e a vingança reclamada pelo marquês de Mântua, seu tio, e prontamente satisfeita pelo próprio Imperador. A recapitulação das destemidas proezas, onde a lembrança e a invenção se confundem, ficará condicionada aos ensinamentos, aliás, nem sempre coincidentes, de umas quantas obras literárias vindas a público entre os séculos XV e XVII: 1.° um grupo de romances jogralescos que facilmente podem caracterizar-se como adaptações peninsulares de troços da gesta francesa; 2.° o auto do dramaturgo quinhentista português Baltasar Dias, intitulado Tragédia do Marquês de Mântua e do Imperador Carlos Magno; 3.° a Tragicomedia Famosa de El marqués de Mantua, da autoria do universalmente reputado poeta dramático espanhol Lope de Vega Carpio.
Sobre estes textos se encadearão, a par de algumas informações desgarradas, que rapidamente lhes esbocem o perfil, os resultados de uma leitura prioritariamente destinada a avaliar em que medida se conciliam ou separam, ao reaverem um comum quinhão de figuras e sucessos. A tragicomédia de Lope de Vega, porém, de feitura dramática mais habilidosa e amadurecida e de meditado alcance ideológico, será motivo para um levantamento um tanto mais ambicioso de intenções e procedimentos estéticos.

Os romances carolíngios
Comecemos então pelos romances, adiantando sobre eles alguns esclarecimentos que os arrumem no corpus, de que são parte, e sirvam de testemunho à sua dupla identidade, de expressão e de conteúdo. São, dissemo-lo atrás, romances protagonizados pelo marquês de Mântua, por Valdovinos e por Carloto. No primeiro volume do Romancero General, Agustín Durán reúne sete sobre ligações e brigas entre tão afamadas personagens, mas são os três primeiros que nos importa pesquisar, porquanto foi sem dúvida neles que aprenderam o melhor da lição Baltasar Dias e Lope de Vega, apesar de não faltarem razões para se admitir que os restantes não eram desconhecidos de nenhum dos dramaturgos. Lope de Vega sobretudo deve ter tido também em mente o romance 358, o do anúncio da conversão da infanta moura Sevilha, por amor do cristão Valdovinos; dos outros, que interpretam os gestos desesperados da morica, ao saber da morte do amado, entoam o seu pranto ou enfatizam o seu apelo ao rei, talvez que a memória lhe tenha guardado alguns pormenores mais impressivos, mas é difícil precisar até que ponto os relembrou, nas tarefas da dramatização.
Segundo Durán, que ainda não foi desmentido, trata-se de uma sequência de romances anónimos, subnúcleo de uma unidade mais vasta de quarenta e nove composições que se aparentam pela incidência na chamada matéria carolíngia; são, por outras palavras, um produto da espanholização de temas, acidentes e figuras da velha épica francesa. Ainda que não muito numerosos na Península, onde o circunstancialismo histórico fora sempre distinto do francês, os romances à moda carolíngia aparecem com mais frequência que os de feição bretã. Contam-se, entre os primeiros, as narrativas das façanhas de Roncesvales ou das lides de Gaifeiros; os mais populares, porém, são talvez os do conde Claros: no entanto, muitos outros pares de França, como Roldão, Reinaldos, Oliveiros, e o próprio Imperador Carlos Magno foram popularizados pela Literatura oral e tradicional ibérica. Ajustados a um padrão sociocultural dos séculos VIII e IX, estes pequenos monumentos poéticos absorvem, no entanto, lendas que apenas começaram a expandir-se no século XII; é talvez esta descontinuidade que explica a sua débil consistência histórica: os anacronismos desfilam, os protagonistas revezam-se nas proezas; as suas fisionomias decompõem-se e recompõem-se em modelos heróicos diferentes». In Maria Idalina R. Rodrigues, Estudos Ibéricos da Cultura à Literatura, Pontos de Encontro, Séculos XIII a XVII, Diálogo-Série Fronteiras Abertas, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, Lisboa, 1987.

Cortesia do ICLP/JDACT

África no 31. Literatura e Poder na África Lusófona. José Venâncio. «Samba Diallo encarna, na verdade, o drama de todos quantos em Paris lançaram o grito da ‘Negritude’, a urgência do ‘retorno às origens’ como forma de se tornarem coerentes com a sua própria origem biológica e cultural»

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Colonialismo e Criação Literária em África
«Então quando eu fui para a escola, para a escola colonial, esta harmonia quebrou-se. O idioma da minha educação deixou de ser o idioma da minha cultura».

«Estas palavras, devidas a um dos maiores escritores africanos, definem o drama por que passaram muitos dos intelectuais africanos dos nossos dias. É provável que Ngugi exagere. O texto em epígrafe pertence a um livro que Ngugi publicou em 1986, Decolonising the Mind – The Politics of Language in African Literature, onde ele explica as razões por que deixou de escrever em inglês, retomando à sua língua materna, o gikuyu. Há uma grande dose de paixão a atravessar este livro. Terá a ver com todos os problemas políticos por que o autor passou na sua terra natal, no Quénia, levando-o à prisão e, por fim, ao exílio. Mesmo admitindo o exagero que poderá estar implícito na frase em epígrafe, algo nos surge como incontestável: é impossível conceber a formação do que geralmente designamos de literatura africana (i. e., literatura africana em línguas europeias) desligada do fenómeno do colonialismo. A sobrevivência deste dependeu da formação de quadros que serviram de intermediários entre os colonizadores, em situação de minoria, e as populações africanas, integradas em sociedades tradicionais, periféricas, em situação de maioria.
A formação de quadros implicava ensino, e ensino formal. Isto é: administravas e a uns tantos africanos, geralmente elementos dos estratos sociais superiores das sociedades tradicionais, um ensino que, sendo, em muitos casos, pretensamente a cópia do modelo metropolitano, acabava sempre por perder em qualidade. Ou porque faltavam professores devidamente qualificados ou porque havia, à partida, uma preocupação explícita das autoridades coloniais em torná-lo profissionalizante, a degeneração tornava-se inevitável. Alguns, muito poucos, dos absolventes do grau secundário lograram deslocar-se à metrópole e frequentar um curso universitário em circunstâncias iguais às dos seus colegas europeus.
Estes dois grupos de africanos letrados, motivados pela ascensão nas sociedades colonial e metropolitana, esforçaram-se, num primeiro momento, por identificar-se com o invasor, com o colonialista. Alienaram-se culturalmente, constituindo então o que geralmente se designa de élites coloniais. Contudo, olhados com desconfiança pelos africanos das sociedades tradicionais e sem serem aceites na sua plenitude de homens livres e pensantes pelas sociedades colonial e metropolitana, apercebem-se, num segundo momento, da inautenticidade cultural e humana em que tinham caído. Esta descoberta é o início de um processo de consciencialização que passa pela reivindicação da autenticidade cultural do seu status com os meios de expressão que o colonizador lhes legara: o idioma e a faculdade de se expressarem literariamente nele. Dando azo a essa faculdade, eles não só dão mostras de que intelectualmente eram capazes de orientar o seu próprio destino, o que até aí havia sido posto em dúvida, como também poderiam porventura com a sua retórica sensibilizar franjas intelectuais da metrópole para a sua causa.
Esta explicação sucinta da génese das literaturas africanas em línguas europeias aplica-se em primeira mão ao nascimento das literaturas francófonas. Os intelectuais que estiveram por detrás delas viram-se a braços com uma política assimilacionista que os fazia franceses de segunda classe. E são precisamente aqueles que viviam em França que encetaram os primeiros passos para a sua afirmação como homens negros e, como tal, pensantes. Eram eles que se viam confrontados a par e passo com a sua situação biológica de homens negros numa sociedade branca, com a fragilidade ou falsidade de um discurso oficial no dia-a-dia. Fundam assim em Paris, em redor da revista Légitime Défense e da que lhe sucede, L’Etudian Noir, o movimento estético-literário que veio a ser conhecido por Negritude. O romance do escritor senegalês Cheikh H. Kane, L’Aventure Ambiguë, cuja 1.ª edição data de 1961, talvez seja de todos os textos representativos desta fase da literatura francófona aquele que melhor exemplifica o dilema dos intelectuais africanos que, no prosseguimento dos seus estudos, se vêm obrigados a absorver muitos dos valores ocidentais. Samba Diallo, a personagem principal do romance, é um jovem senegalês, de origem fula (peul), que se desloca a Paris para aí dar continuidade aos seus estudos. O confronto com a cultura ocidental, com a cultura europeia, despoleta nele uma profunda crise de consciência que não será de todo alheia à sua prematura morte, já na sua terra natal. Samba Diallo encarna, na verdade, o drama de todos quantos em Paris lançaram o grito da Negritude, a urgência do retorno às origens como forma de se tornarem coerentes com a sua própria origem biológica e cultural.
Além disso, o carácter autobiográfico do romance é por de mais evidente. Como Samba Diallo, também Cheikh Hamidou Kane nasceu no seio de uma família tradicional no interior do Senegal, foi iniciado no estudo do Corão durante a sua infância e mais tarde concluiu em Paris (Sorbonne) o curso de Direito e Filosofia. Depois disso, tal como Samba Diallo, regressa ao seu país natal. A necessidade de afirmar a sua Negritude não se faz sentir com tanta acuidade entre os intelectuais anglófonos. A Inglaterra privilegiara, na verdade, uma política de integração indirecta, o correlato da administração indirecta, das populações africanas na economia mundial. Serviu-se geralmente para tal fim do seu potencial económico, fazendo chegar até aos pontos mais recônditos a lei do capitalismo. Tal não significa, todavia, que tenha descurado os meios que haviam sido apanágio dos colonialismos francês e português, nomeadamente a evangelização cristã. Os efeitos desta aparecem registados num dos primeiros e mais significativos textos da literatura anglófona. Trata-se do romance Things Fall Apart, de Chinua Achebe, um dos mais conhecidos e conceituados escritores de língua inglesa dos nossos dias. Achebe foi um dos pioneiros da literatura anglófona. O seu romance foi editado pela primeira vez em 1958. Ele tem por tema o desabar das estruturas e dos valores tradicionais entre os Ibos, povo que habita o sueste da Nigéria e do qual o autor é originário». In José Carlos Venâncio, Literatura e Poder na África Lusófona, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, Diálogo-Série Convergência, Cultura, Etnologia, Linguística, África Lusófona, INCM, Lisboa, 1992, ISSN 0871-4444.

Cortesia de INCM/JDACT

Poesia no 31. Pedro Salinas. «Un mediodía que acepta serenamente su sino que la tarde le revela. Mientras haya quien entienda la hoja seca, falsa elegía, preludio distante a la primavera»

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Dame tu libertad...
«Dame tu libertad.
No quiero tu fatiga,
no, ni tus hojas secas,
tu sueño, ojos cerrados.
Ven a mí desde ti,
no desde tu cansancio
de ti. Quiero sentirla.
Tu libertad me trae,
igual que un viento universal,
un olor de maderas
remotas de tus muebles,
una bandada de visiones
que tú veías
cuando en el colmo de tu libertad
cerrabas ya los ojos.
¡Qué hermosa tú libre y en pie!
Si tú me das tu libertad me das tus años
blancos, limpios y agudos como dientes,
me das el tiempo en que tú la gozabas.
Quiero sentirla como siente el agua
del puerto, pensativa,
en las quillas inmóviles
el alta mar. La turbulencia sacra.
Sentirla,
vuelo parado,
igual que en sosegado soto
siente la rama
donde el ave se posa,
el ardor de volar, la lucha terca
contra las dimensiones en azul.
Descánsala hoy en mí: la gozaré
con un temblor de hoja en que se paran
gotas del cielo al suelo.
La quiero
para soltarla, solamente.
No tengo cárcel para ti en mi ser.
Tu libertad te guarda para mí.
La soltaré otra vez, y por el cielo,
por el mar, por el tiempo,
veré cómo se marcha hacia su sino.
Si su sino soy yo, te está esperando.

Agua en la noche, serpiente indecisa
Agua en la noche, serpiente indecisa,
silbo menor y rumbo ignorado:
Qué día nieve, qué día mar? Dime.
Qué día nube, eco
de ti y cauce seco?
Dime.
 - No lo diré: entre tus labios me tienes,
beso te doy, pero no claridades.
Que compasiones nocturnas te basten
y lo demás a las sombras
déjaselo, porque yo he sido hecha
para la sed de los labios que nunca preguntan».
Poemas de Pedro Salinas

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Prosa no 31. Cartas do Extremo Oriente. Wenceslau Moraes. «… escritas umas aos 20 anos, outras mais de 15 anos passados, umas primitivamente impressas nos folhetins dos jornais, outras agora escolhidas por entre a papelada inútil de uma pobre gaveta de secretária, tem como única razão esta mesma dedicatória»

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Introdução
«(…) O tempo foi temperando e depurando sabiamente esta amizade: Wenceslau de Moraes enviava brinquedos à filha do amigo, confessava-lhe os seus segredos íntimos, pedia-lhe conselhos, solicitava-lhe favores e manifestava a sua profunda admiração em cartas que dirigia ao sobrinho, Joaquim Moraes Costa: Alegro-me em saber que o Dr. Peres Rodrigues e sua Esposa os visitaram, brindando-te com um aquário. Eu tenho o Dr. Rodrigues por um homem altamente superior; Portugal inteiro talvez não tenha cem indivíduos que o igualem; tu e tua irmã são ainda muito novos para o compreenderem completamente, só bem tarde talvez o possam apreciar como ele merece. No entretanto, devem estimá-lo muito, como um parente, como um amigo; abrirem-lhe o seu coração, não terem o menor segredo para ele; e finalmente seguirem todos os seus conselhos, pois só nele encontrarão guia seguro contra as grandes dificuldades da vida. Sólida amizade que foi veementemente lavrada em cartas e dedicatórias, das quais se destaca esta, que se encontra inédita, na Biblioteca Central da Marinha: A publicação destas páginas destonantes, escritas umas aos 20 anos, outras mais de 15 anos passados, umas primitivamente impressas nos folhetins dos jornais, outras agora escolhidas por entre a papelada inútil de uma pobre gaveta de secretária, tem como única razão esta mesma dedicatória. Fiz este livro para o oferecer a um amigo, que me desculpará a sua inutilidade, apreciando apenas a primeira página, como um penhor da minha cordial simpatia. Por sua vez, Sebastião Peres Rodrigues não era menos efusivo. Em carta inédita, dirigida a Wenceslau, afirmava nomeadamente: Outro companheiro como o Amigo é para mim, já não espero encontrar cá por esta vida. Na verdade, a sua disponibilidade era total o que o levou inclusivamente a pôr à disposição do escritor as suas economias para a publicação de um livro, a incentivá-lo constantemente e a dissipar as mágoas que o consumiam e o minavam gradualmente. Mais tarde foi seu procurador, tutor dos sobrinhos, com Almeida d'Eça, e contribuiu decisivamente para desbloquear o seu vencimento de Cônsul, em 1911.
No extenso testemunho referido anteriormente, Sebastião Peres Rodrigues evoca o seu primeiro encontro com Wenceslau do seguinte modo: Impressionou-me a figura e modos de W.: magro, de encurvado arcabouço, barba toda muito loira, olhos grandes de expressão bondosa e inteligente, não era um tipo vulgar, e a natural distinção impunha-se a quem lhe ouvisse o falar correcto, despretensioso, e a breve trecho revelando qualidades afectivas. […] Certo é que, desde os primeiros dias de viagem, longas conversas se travaram; gostos, hábitos e tendências se revelaram, surgindo a seguir a confidência dos seus lavores literários, dados a público no Diário da Manhã, sob a égide de Pinheiro Chagas, mas ao abrigo de um impenetrável pseudónimo.
Anos depois, Sebastião Peres Rodrigues insurgiu-se contra as alusões de certa imprensa periódica, que associava a demissão inesperada de Wenceslau dos cargos de Cônsul e de oficial da Marinha a uma opção de carácter exclusivamente político: Não houve nessa atitude [...1 o menor propósito de significar incompatibilidades com a República, como poderá julgar. Quem não conhecer o superior espírito que é Wenceslau de Moraes. Não, nunca ele pensaria em agravar desse modo os homens do seu país. Aquele gesto de renúncia é a consequência dum estado de alma muito particular, que eu via lentamente desenvolver-se, em delicadas e dolorosas florações, nas cartas que ele me escrevia. É a realização de um sonho, velho de muitos anos [...]. Esta amizade extinguiu-se por volta de 1914: segundo Sebastião Peres Rodrigues, a rotura prendeu-se com uma atitude menos positiva de Wenceslau para com os sobrinhos de quem aquele médico era tutor». In Wenceslau de Moraes, Cartas do Extremo Oriente, Fundação Oriente, Lisboa, 1993, ISBN 972-9440-07-7.

Cortesia de FOriente/JDACT

sexta-feira, 30 de maio de 2014

O Mistério do Infante Santo. Jorge Sousa Correia. «… as trombetas e charamelas dos músicos dentro do Paço Real, juntamente com os sinos da Sé, ali mesmo em baixo, começaram a troar os seus fortes sons, sinais indistintos do momento em que o rei seria aclamado»

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O Princípio
«(…) Após uma breve pausa para retomar o fôlego, o judeu afinou as cordas vocais para concluir o que no seu entender correspondia à salvação do infante: - Ordenar-vos-ia se a minha autoridade chegasse a tanto. Como não chega, rogo-vos, rastejo a vossos pés para que adieis o acto que estais prestes a concretizar. O meu amo, ponderai. É que não vos custa nada adiar por umas horas a cerimónia, para serdes feliz. Sem pronunciar palavra, o príncipe, via-se bem, tinha chegado ao último dos limites que concedera a Abraão Guedelha e a si próprio. Num gesto compreensível, mandou levar o inconsolável cientista, passando das mãos nobres dos infantes para as mãos rudes dos guardas reais e dali para longe do rei. Debilitado, Guedelha, mesmo assim, quis mostrar que a força cansada do corpo não se reflectia na voz. Encheu os pulmões de todo o ar que pôde e num brado disse as palavras malditas: - Não me dais ouvidos? Não quereis ser feliz? Rejeitais as poderosas razões dos astros? Então, o teu reinado será de grandes tormentos.
O silêncio que se seguiu às palavras do mestre significou mais um pesadelo do que um momento de reflexão, pois uma maldição acabava de cair sobre aquele que iria governar Portugal. Ninguém naquela reunião entendia de astrologia, a não ser o mestre, mas todos ficaram silenciosos, ainda mais porque em forma de premonição acabavam de escutar um mau agoiro. Agitado, levado aos encontrões, ao mestre de nada lhe valeu estrebuchar. Convinha até que o não fizesse, porque os limites da sua segurança física estavam azero, e dali em diante, tudo quanto dissesse voltar-se-ia contra si, expondo a sua integridade claramente ameaçada. Não desconhecia que se tinha excedido, receava até pelo que lhe viesse a acontecer, muito embora confiasse na bondade do rei e no momento de grande elevação que se vivia na corte. Martirizava-se, no entanto, quando pensava naquele homem sem tempo, por quem era capaz de tudo, até de morrer. A cerimónia seria antes do meio-dia, pensou Guedelha, que fosse. Servia-lhe tão bem como até ali, mas, infelizmente, adivinhava o Mestre, mais vezes, em condições bem mais difíceis e por menos tempo.
Livre dos comentários do físico, o rei Duarte abandonou o local da controvérsia, num passo levitado, deixando que o seu corpo cumprisse o que a mente lhe pedia. Saboreando cada contracção dos músculos, sentou-se no cadeirão real para dar início às cerimónias. Ali perto, do outro lado das muralhas, ouviam-se as vozes dos populares. Não tinham os problemas transcendentais dos senhores do castelo, estavam limpos tanto quanto podiam, vestiam-se do que tinham de melhor, não renegavam a sua condição de servidores de todos os serviços. Homens e mulheres, jovens ou velhos, gritavam estridentes vivas ao infante, entremeadas de excessos verbais que lhes ficava bem e os divertia. Os homens, sempre em maioria, entontecidos pela excitação da maralha e pelo vinho que corria nas gargantas, de borla, pela graça de sua senhoria o príncipe Duarte, empunhavam nas mãos engrossadas por trabalhos agressivos as suas alfaias, reconhecimento provado de uma identidade social e profissional. Cavadores ou abegões, regateiras ou vendedeiras, estavam todos convictos de que a sua presença era indispensável naquele momento de exaltação.
Os moços, menos atentos aos actos institucionais, fossem eles mancebos da lavoura, das ovelhas ou aprendizes das mais diversas profissões, perseguiam-se entre a multidão em correrias e esquivas nem sempre conseguidas. Entretanto, dentro do castelo, tudo se preparava para confirmar a sucessão do filho varão de João I e de D. Filipa de Lencastre. Depois de um silêncio reclamado, as trombetas e charamelas dos músicos dentro do Paço Real, juntamente com os sinos da Sé, ali mesmo em baixo, começaram a troar os seus fortes sons, sinais indistintos do momento inesquecível em que o rei seria aclamado». In Jorge Sousa Correia, O Mistério do Infante Santo, A Revelação dos Pecados da Ínclita Geração, Clube do Autor, Lisboa, 2013, ISBN 978-989-724-067-6.

Cortesia de C. Autor/JDACT

A Arte da Voz. Música. «Pássaro breve rompendo a chuva caída na minha melancolia. Ave voando na chuva que vai caindo em mim sem cair no dia. Pássaro leve cantando o sol que amanhece na noite que me entristece»

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«Leve es la parte de la vida
que como dioses rescatan los poetas.
El odio y destrucción perduran siempre
sordamente en la entraña
toda hiel sempiterna del español terrible,
que acecha lo cimero
con su piedra en la mano»


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Poesia. Pedro Salinas. «Dame tu libertad. No quiero tu fatiga, no, ni tus hojas secas, tu sueño, ojos cerrados. Ven a mí desde ti, no desde tu cansancio de ti. Quiero sentirla»

Cortesia de wikipedia

Confianza
Mientras haya
alguna ventana abierta,
ojos que vuelven del sueño,
otra mañana que empieza.

Mar con olas trajineras
mientras haya—
trajinantes de alegrías,
llevándolas y trayéndolas.

Lino para la hilandera,
árboles que se aventuren,
mientras haya—
y viento para la vela.

Jazmín, clavel, azucena,
donde están, y donde no
en los nombres que los mientan.

Mientras haya
sombras que la sombra niegan,
pruebas de luz, de que es luz
todo el mundo, menos ellas.

Agua como se la quiera
mientras haya—
voluble por el arroyo,
fidelísima en la alberca.

Tanta fronda en la sauceda,
tanto pájaro en las ramas
mientras haya—
tanto canto en la oropéndola.

Un mediodía que acepta
serenamente su sino
que la tarde le revela.

Mientras haya
quien entienda la hoja seca,
falsa elegía, preludio
distante a la primavera.

Colores que a sus ausencias
mientras haya—
siguiendo a la luz se marchan
y siguiéndola regresan.

Diosas que pasan ligeras
pero se dejan un alma
mientras haya—
señalada con sus huellas.

Memoria que le convenza
a esta tarde que se muere
de que nunca estará muerta.

Mientras haya
trasluces en la tiniebla,
claridades en secreto,
noches que lo son apenas.

Susurros de estrella a estrella
mientras haya—
Casiopea que pregunta
y Cisne que la contesta.

Tantas palabras que esperan,
invenciones, clareando
mientras haya—
amanecer de poema.

Mientras haya
lo que hubo ayer, lo que hay hoy,
lo que venga.
Poema de Pedro Salinas, in ‘Confianza


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Porque foi Conquistada Ceuta? O arranque dos Descobrimentos. Paulo Jorge Pinto. «Até ao século XVIII, a informação que circulava na Europa concedia aos Portugueses, o papel pioneiro na exploração do Atlântico e da costa africana, descrevendo o processo que culminaria com as viagens de Colombo e Gama»

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O ‘Arranque’ dos Descobrimentos. O infante Fernando foi realmente um mártir abandonado à sua sorte?
«(…) Contudo, a ideia, muito vulgarizada, de que os Portugueses o abandonaram à sua sorte, não abrindo mão da cidade de Ceuta por motivações estratégicas, não é verdadeira. Há três informações que escapam, geralmente, aos juízos e análises que se fazem a este assunto. A primeira é a fragilidade da dinastia merínida, que então reinava em Marrocos, assolada por disputas internas e desprestigiada devido às incursões portuguesas, o que dificultava as negociações e a diplomacia; a segunda é o clima de grande desconfiança entre as duas partes, agravada pelo adiamento por parte dos Portugueses a estabelecer o acordo e, evidentemente, pela tentativa frustrada em libertar o infante cativo. Finalmente, houve, de facto, uma decisão final para entregar Ceuta, já depois da morte do rei Duarte, e que mereceu a concordância do regente Pedro e da rainha D. Leonor. Foi ultimada uma embaixada para se dirigir a Ceuta, tomar o governo da cidade e proceder daí à troca do infante Fernando. Contudo, o navio em que seguia foi atacado, ao largo do cabo de S. Vicente, por um navio de piratas genoveses, causando a morte do embaixador. As negociações conheceram novo interregno, mas estava em curso um processo diplomático que poderia, eventualmente, ter obtido sucesso se a morte do infante, em 1443, não tivesse ocorrido em data tão prematura.

A primazia portuguesa nos Descobrimentos é hoje aceite sem reservas. Sempre foi assim?
Quando o público português tomou contacto com a obra de divulgação Os Descobridores, de Daniel J. Boorstinlo, nem todos terão reparado num pequeno capítulo (n.º 21,) dedicado aos Portuguese Sea Pioneers. Aqui é sucintamente descrito e apresentado o processo, as causas e as explicações que levaram o infante Henrique e os seus homens a assumir a vanguarda do descobrimento do mundo; nada que constitua surpresa para os leitores portugueses, afinal são matérias aprendidas desde os bancos da escola e que fazem parte do imaginário e das referências nacionais. Mas para outros públicos, foi certamente uma novidade. As informações contidas no livro não são especialmente interessantes, nem os Portugueses são pintados com cores particularmente elogiosas, assumindo esta questão uma tonalidade banal, perfeitamente assimilada e dentro dos parâmetros do conhecimento corrente e balizado pela comunidade científica. E é verdade, felizmente. Mas para se atingir este grau de anormalidade, numa obra com tão grande divulgação internacional, houve um longo caminho a percorrer entre disputas académicas e pessoais, lacunas informativas, preconceitos nacionalistas, interesses políticos e simples oportunismo.
Até ao século XVIII, a informação que circulava na Europa concedia aos Portugueses, sem grandes reticências, o papel pioneiro na exploração do Atlântico e da costa africana, descrevendo o processo que culminaria com as viagens de Colombo e Vasco da Gama. Os enciclopedistas da Luzes, que compilavam e sistematizavam informação e a faziam divulgar pela Europa, tinham acesso às crónicas portuguesas, sobretudo as Décadas de João de Barros, onde constavam estes dados. Por exemplo, a Histoire des Deux Indes, atribuída a Guillaume-Thomas Raynal, conhecido vulgarmente por Abade Raynal (1713-1796), que conheceu um extraordinário sucesso e divulgação na época, menciona as viagens tuteladas pelo infante Henrique e a importância da figura do rei João II.
Foi no século XIX que surgiram as primeiras obras que, apesar da falta de suporte documental e de credibilidade argumentativa, colocavam em causa o que até então era tomado como um dado adquirido: que os Portugueses haviam sido os primeiros a explorar o Atlântico e a desenvolver métodos e práticas de navegação modernas. A alteração estava ligada à forma como estas questões, que até essa altura eram meros dados históricos, adquiriram uma crescente importância internacional. De facto, as potências europeias começavam a interessar-se por África; Portugal, sem poder naval e militar para impedi-las, invocava direitos históricos decorrentes do facto de ter sido o primeiro a explorar essas paragens. A História foi, assim, mais uma vez utilizada ao serviço dos conflitos e das disputas entre as potências coloniais. Em 1832, o autor francês Louis Estancelin, deputado da região do Somme, publicou uma obra na qual defendia que os seus compatriotas (mais especificamente os Normandos da região de Dieppe) haviam explorado as costas africanas e navegado até à Guiné no século XIV, antes, portanto, dos portugueses. Coube ao visconde de Santarém, diplomata em Paris, rebater estes argumentos e provar definitivamente o contrário, alguns anos mais tarde. Não era uma disputa meramente académica: o argumento histórico tinha utilidade no conflito que opunha interesses portugueses e franceses na região do rio Casamansa, no actual Senegal». In Paulo Jorge Sousa Pinto, Os Portugueses Descobriram a Austrália? Porque foi Conquistada Ceuta? O arranque dos Descobrimentos, A Esfera dos Livros, Lisboa, 2013, ISBN 978-989-626-498-7.

Cortesia de E. dos Livros/JDACT

Mitos de Ontem e de Hoje. Idade Média. O Oceano e a Ásia eram povoados de monstros? Paulo Sousa Pinto. «Se os bosques, as montanhas ou os rios próximos escondiam seres temíveis ou mágicos, como esperar que terras distantes e desconhecidas não albergassem maravilhas ainda mais estranhas?»

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«(…) A estas criaturas semi-humanas acrescia um vasto rol de animais maravilhosos, como dragões, centauros, unicórnios, sátiros ou sereias, que se supunha viverem algures, em coordenadas mais ou menos imprecisas, no oceano ou em terras situadas além dos limites directamente conhecidos pelos Europeus. A Ásia longínqua, para lá do mundo muçulmano, suscitava especial interesse. Circulavam pela Europa várias compilações de maravilhas do Oriente, e uma em especial, a de John de Mandeville, conheceu grande difusão, tendo sido copiada, traduzida e, mais tarde, impressas. Este autor permanece um mistério. Aparentemente, trata-se de um relato de uma viagem realizada por um nobre inglês algures em meados do século XIV, mas essa personagem provavelmente nunca existiu e a viagem parece não passar de uma compilação de dados de viajantes reais misturada com histórias fabulosas.
Convém, contudo, relembrar que não era apenas o oceano desconhecido e a Ásia longínqua que se julgavam povoados de criaturas sobrenaturais. Bruxas, lobisomens, vampiros, anjos ou faunos preenchiam o imaginário e faziam parte do quotidiano dos Europeus, condicionando a forma como se relacionavam entre si e com o mundo em redor (tanto o natural como o sobrenatural). Se os bosques, as montanhas ou os rios próximos escondiam seres temíveis ou mágicos, como esperar que terras distantes e desconhecidas não albergassem maravilhas ainda mais estranhas? Como é natural, as descrições de monstros, seres maravilhosos e homens bizarros, assim como de fabulosas riquezas, que existiriam nas margens e para além do mundo conhecido, alimentavam a imaginação e excitavam tanto o temor como a curiosidade. Não eram, porém, um móbil suficientemente poderoso para iniciar um processo de descobrimento do mundo, como o que os Portugueses desencadearam na primeira metade do século XV, nem um travão inibidor capaz de impedir ou refrear a sua progressão e sucesso.

Antes dos Descobrimentos, pensava-se na Europa que a Terra era plana?
Tive uma professora no antigo ciclo preparatório que o afirmou uma velha sala de aula. Como não se tratava de uma docente de História ou Geografia, assumi que as suas palavras não passavam de um simples comentário, um mero eco de uma ideia muito comum. Uma Terra plana, quadrada e com abismos onde se pensava que se precipitariam os navios que se chegassem demasiado perto, ou um disco circular sob uma abóbada celeste, são ideias correntes, embora erradas, acerca do alegado pensamento dominante na Europa sobre a forma da Terra, até ao século XV. As viagens marítimas teriam sido, assim, um movimento de enorme ousadia e coragem, não só por contrariarem a tradição defendida por sábios e autoridades eclesiásticas, mas também por desafiarem um destino fatal que se tinha por certo. Estas noções erróneas, mas que permanecem enraizadas, ainda nos nossos dias, estão articuladas com o mito de uma Idade Média obscurantista, dominada por uma Igreja Católica ferozmente avessa ao espírito crítico e que defenderia, de forma dogmática, a ideia da Terra plana. A sua divulgação ficou a dever-se, em boa parte, ao físico americano John William Draper (1811-1882) e ao enorme sucesso e difusão da sua obra History of the Conflict between Religion and Science, de 1874.
É também fácil de constatar, em certa literatura de divulgação, sobretudo norte-americana, como Cristóvão Colombo era apresentado como um génio revolucionário decidido a provar que o mundo era redondo, contra o pensamento dominante, e obscurantista, da época. Aparentemente, foi o escritor americano Washington Irving (1783-1859) o criador e principal responsável pela difusão deste mito, na sua biografia do navegador (A History of the Life and Voyages of Christopher Columbus, 1828). No nosso tempo, existir quem defenda que a Terra é plana (como os membros da Flat Earth Society, fundada por Samuel Shenton em 1956 e actualmente com actividade residual) não passa de uma curiosidade bizarra, mas há séculos não o era seguramente. Contudo, esta ideia nunca prevaleceu e as tradições geográficas que a defendiam nunca conheceram expressão significativa». In Paulo Jorge Sousa Pinto, Os Portugueses Descobriram a Austrália? A Esfera dos Livros, Lisboa, 2013, ISBN 978-989-626-498-7.

Cortesia de E. dos Livros/JDACT

O Maravilhoso e o Quotidiano no Ocidente Medieval Jacques le Goff. «Uma outra fronteira do maravilhoso é o maravilhoso político. Os chefes sociais e políticos da Idade Média utilizaram o maravilhoso para fins políticos. Trata-se da recuperação do maravilhoso, mas de uma forma extrema»

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O Maravilhoso no Ocidente Medieval
«(…) É por exemplo o caso de dois sectores que me parecem mais característicos da Idade Média que de outras épocas: o maravilhoso quotidiano e o maravilhoso político. As manifestações do maravilhoso parecem muitas vezes sem ligação com a realidade quotidiana mas revelam-se dentro dela (um elemento que será redescoberto por vezes pelo fantástico romântico ou pelo surrealismo moderno). Se continua a haver o movimento de admiração dos olhos que se arregalam, a pupila dilata-se cada vez menos e este maravilhoso, conservando embora o seu carácter vivido de imprevisibilidade, não parece particularmente extraordinário. Interessante um exemplum de Cesário de Heisterbach, no Dialogus Miraculorum (início do século XIII). Um jovem nobre, converso cisterciense, está a guardar carneiros reunidos numa eira da abadia cisterciense a que pertence, quando vê aparecer diante de si um primo recentemente falecido. Com toda a tranquilidade, pergunta-lhe: Que fazes aqui? E o outro, em resposta: Morri, vim para dizer que estou no Purgatório e é preciso que rezeis por mim. Faremos o que é necessário. O defunto afasta-se assim no prado e desaparece no horizonte como se fizesse parte da paisagem natural, sem que o mundo se mostre minimamente perturbado por esta aparição. Nos Otia Imperialia, um texto um pouco anterior mas ainda do início do século XIII, entre as numerosíssimas anotações de mirabilia, o autor Gervásio de Tilbury conta que nas cidades do vale do há seres maléficos, os dragões, que agridem as crianças, mas não são, salvo excepções, os tradicionais papões. Introduzem-se de noite nas casas, com as portas fechadas, tiram as crianças dos berços e levam-nas para a rua ou para as praças, onde são encontradas no dia seguinte de manhã, tendo-se mantido as portas fechadas durante todo este tempo. Os vestígios da passagem dos dragões são quase imperceptíveis, o maravilhoso perturba o menos possível a regularidade quotidiana; e provavelmente é exactamente este o dado mais inquietante do maravilhoso medieval, ou seja, o facto de ninguém se interrogar sobre a sua presença, que não tem ligação com o quotidiano e está, no entanto, totalmente inserida nele.
Uma outra fronteira do maravilhoso é o maravilhoso político. Os chefes sociais e políticos da Idade Média utilizaram o maravilhoso para fins políticos. Trata-se de uma forma de recuperação do maravilhoso, mas de uma forma extrema. É sabido e quase normal, óbvio, que as dinastias reais procuraram forjar para si origens míticas. Famílias nobres e cidades imitaram-nas. Mas o mais surpreendente é que essas origens míticas estão radicadas por vezes, e não frequentemente, num maravilhoso inquietante e ambíguo. É muito conhecida a história de Mélusine, a maravilhosa mulher medieval, provavelmente avatar de uma deusa-mãe, de uma deusa da fecundidade, reivindicada como antepassada, como uma espécie de totem, por diversas famílias nobres. Uma delas conseguiu-o, a dos Lusignani, que se apoderaram de Mélusine, deram-lhe o seu nome, vista que Mélusine não é nomeada antes da altura em que se une, ousaria dizer, com os Lusignani. Assim, o maravilhoso torna-se instrumento de política e de poder. O exemplo mais belo deste maravilhoso político ambíguo encontramo-lo em Geraldo de Cambrai (Geraldo de Barri), no início do século XIII. Trata-se da ascendência melusiana dos Plantagenetas, que se tornaram reis de Inglaterra. A dinastia dos Plantagenetas, segundo Geraldo, teria tido como antepassada, no século XI, uma mulher-demónio, e por outros testemunhos sabemos que essa lenda era bem conhecida e que Ricardo, Coração de Leão, lhe fazia referência e se servia dela na sua acção política para explicar o modo, muitas vezes desconcertante, de se comportar, para justificar os aspectos por vezes extravagantes das suas opções e daquilo que acontecia naquela família bastante escandalosa, em que nomeadamente os filhos se armavam contra o pai e se combatiam incessantemente. Ricardo gostava de dizer: Nós, filhos da mulher-demónio... Uma coisa menos conhecida, em contrapartida, é o facto de Filipe Augusto ter procurado utilizar este mito das origens maravilhosas contra os Plantagenetas, sobretudo contra João Sem Terra; e em particular quando preparou o falhado desembarque do filho Luís em Inglaterra, montou uma autêntica campanha psicológica em que os emissários e os partidários dos Franceses diziam que era preciso acabar com os filhos da mulher-demónio». In Jacques le Goff, Il meraviglioso e il quotidiano nell’occidente medievale, Gius, Laterza, 1983, Roma, O maravilhoso e o quotidiano no ocidente medieval, Edições 70, Lisboa, 2010, ISBN 978-972-44-1563-5.

Cortesia de E70/JDACT

quinta-feira, 29 de maio de 2014

O Maravilhoso e o Quotidiano no Ocidente Medieval Jacques le Goff. «… conforme as épocas, carolíngio, românico, gótico, frente a um humanismo que se apoia na exploração crescente de uma visão antropomórfica de Deus, houve, na área do maravilhoso, uma certa forma de resistência cultural»

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O Maravilhoso no Ocidente Medieval
«(…) Há que distinguir, como o fizeram os homens da Idade Média, entre o Antigo e o Novo Testamento. No Novo Testamento há, evidentemente, mais milagres que coisas maravilhosas. Quanto ao Antigo Testamento, atendendo ao tipo de leitura e de compreensão que dele tinham os homens da Idade Média, a parte do maravilhoso parece-me relativamente reduzida. Sabemos bem, naturalmente, que há os estudos clássicos de Eruzer, de Saintyves e outros, sobre o folclore no Antigo Testamento. Nele encontramos episódios, por vezes mesmo livros inteiros, que alimentaram abundantemente o maravilhoso do Ocidente cristão. Um lugar à parte deve assinalar-se, em particular, se me é permitido saltar do Antigo para o Novo Testamento, ao Apocalipse. O Antigo Testamento, tal como foi lido, sentido, vivido pelos homens da Idade Média, encerra uma pequena parte de maravilhoso. E a Bíblia é, senão a fonte de tudo, pelo menos ponto de referência para tudo. O que explica porque é que, quando o maravilhoso vier a ressurgir, ele será de algum modo independente: para ele será de facto muito mais difícil do que para outros elementos encontrar aquilo que os homens da Idade Média procuravam sempre, a referência bíblica.
O terceiro e último problema é a função do maravilhoso; com efeito, uma vez que descrevemos o maravilhoso, que procurámos caracterizá-lo, não dissemos ainda grande coisa se nos não esforçarmos por compreender também porque é que ele foi produzido e consumido, para que é que serviu, qual foi a sua função. Uma primeira observação sublinha a evidente função de compensação do maravilhoso, O maravilhoso é um contrapeso à banalidade e à regularidade do quotidiano. Mas é preciso ver como ele se manifesta. No Ocidente medieval os mirabilia tiveram a tendência para organizar-se numa espécie de universo virado ao contrário. Os temas principais são: a abundância alimentar, avidez, a liberdade sexual, o ócio. Diante de algumas grandes palavras de ordem e forças mentais deste mundo, não é um acaso que precisamente no campo do folclore e do maravilhoso uma das raras criações do Ocidente medieval seja o tema da terra da Cocanha, que aparece no século XIII, não tendo existido antes, de facto. Podemos, sem dúvida, encontrar raízes ou certas equivalências mais longínquas, mas o tema da Cocanha como tal é uma criação medieval. O mundo às avessas e, acrescentaria eu, o mundo ao contrário; e é aqui que o Génesis, e principalmente um Génesis em que se irá à procura dos elementos pré-cristãos, mais do que dos elementos propriamente cristãos, exerce o seu fascínio sobre os homens da Idade Média. É a ideia de um paraíso terrestre e de uma idade de ouro que não estão para diante, no futuro, mas para trás, no passado, e se se procura reencontrá-los num millenium utópico não é em vista de um horizonte futuro mas enquanto retorno ao que está para trás.
Mundo às avessas, mundo ao contrário, distinção entre o miraculosus, o magicus, o mirabilis. Parece-me poder dizer-se, sem exagerar, que o maravilhoso foi em última análise uma forma de resistência à ideologia oficial do cristianismo (embora não tenha sido esta por certo a sua única função, mas uma das mais importantes). Sobre um ponto, que considero essencial a este respeito. Com isto, não creio pôr arbitrariamente a tónica em alguns sectores do maravilhoso medieval em detrimento de outros. No universo dos animais, das plantas, dos objectos, dos seres fabulosos, descobre-se quase sempre uma qualquer referência ao homem, como sucede no maravilhoso muçulmano, por exemplo. No Ocidente medieval tenho a impressão de que as coisas se passam exactamente ao contrário. Assiste-se a uma desumanização do universo que desliza para um universo animalista, para um universo de monstros ou de bichos, para um universo mineralógico, para um universo vegetal. Há uma espécie de recusa do humanismo, uma das grandes bandeiras do cristianismo medieval que se funda na ideia do homem feito à imagem de Deus. Frente a um humanismo que se chamou cristão ou, conforme as épocas, carolíngio, românico, gótico, frente a um humanismo que se apoia na exploração crescente de uma visão antropomórfica de Deus, houve, na área do maravilhoso, uma certa forma de resistência cultural. Para concluir, eu insistiria naquilo a que chamaria as fronteiras do maravilhoso. Tal como muitos fenómenos, muitas categorias, o maravilhoso não existe no estado puro. Acolhe-se dentro de fronteiras permeáveis. O amplo alcance do maravilhoso medieval depende exactamente de um seu desenvolvimento interno, pelo qual o maravilhoso se estimula, se alarga e assume proporções ambiciosas e por vezes extravagantes». In Jacques le Goff, Il meraviglioso e il quotidiano nell’occidente medievale, Gius, Laterza, 1983, Roma, O maravilhoso e o quotidiano no ocidente medieval, Edições 70, Lisboa, 2010, ISBN 978-972-44-1563-5.

Cortesia de E70/JDACT

Povos e Culturas Reflexos do Maio de 68 na Sociedade Portuguesa Artur Matos e Mário Lages. «Uma concepção utópica? Foi a grande, [a] real, a força de transcendência, a ideia nova, na primeira rebelião poderosa contra o conjunto da sociedade existente, a rebelião pela total transvalorização…»

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Reflexos do Maiode’68 na Sociedade Portuguesa
Para uma revisitação de one-dimensional man’ de Herbert Marcuse
Consciência e utopia
«(…) Com efeito, segundo Marcuse, o fenómeno da própria revolta estudantil vem trazer renovada confirmação empírica à sua tese de que o conceito de uma classe revolucionária predeterminada corresponde, no fundo, a uma constelação revoluta e obsoleta das lutas sociais (própria do século XIX e dos começos do século XX), que não está mais em linha com as alterações entretanto surgidas no funcionamento efectivo dos sistemas materiais e do tecido social. Pelo contrário, de acordo com a análise que faz do capitalismo avançado e dos seus poderosos mecanismos de integração e de homogeneização, é apenas do seio de uma acção determinada de rejeição em bloco do estabelecido (e da bateria de princípios que o norteia) que os próprios portadores da mudança, detentores de um certo estatuto de exterioridade relativamente ao sistema instalado, se perfilam e assumem como tal, na e pela sua prática. Como ele próprio refere mais adiante neste mesmo ensaio de 1969: A procura de agentes históricos específicos de mudança [change] revolucionária nos países capitalistas avançados é, de facto, sem sentido [meaningless]. As forças revolucionárias emergem no próprio processo de mudança; a tradução do potencial no actual [ou efectivo, actual] é obra de prática política. Por outro lado, o ingresso (ingression) da imaginação e da criatividade, de uma radical liberdade transgressora e sensualizada, em processos que declaradamente apontam à transformação configura um ambiente de alternativa que se acompanha de rasgos de surrealidade e de utopismo, particularmente, se se tomar como termo de referência o princípio de realidade que comanda a subsistência do existente e o próprio modelo tradicional que aos revolucionamentos costuma ser associado.
Daí a perplexidade, e, do mesmo passo, o apreço, que não deixa de acompanhar uma reflexão sobre os desenvolvimentos mais recentes: Uma concepção utópica? Foi a grande, [a] real, a força de transcendência[transcending force], a ideia nova [idée neuve], na primeira rebelião poderosa contra o conjunto [the whole] da sociedade existente, a rebelião pela total transvalorização [ou transvalidação] de valores [transvaluation of values], por maneiras de viver [ways of life] qualitativamente diferentes: a rebelião de Maio em França. No entanto, o ajuizamento de Marcuse procura escavar mais fundo, e envolve toda uma reapreciação, e um reenquadramento, do próprio conceito de utopia, que privilegie uma sua abordagem dinâmica relativamente às meras contraposições num registo de imediatez paralisada. O viso de que estas manifestações de revolta se revestem apresenta inegáveis traços utópicos, que não devem em caso algum ser liminarmente desatendidos. Simplesmente, importa questionar se esta contaminação de processos que visam uma remodelação social do viver que não dispensa (antes requer) um vector de criatividade artística, uma dimensão estética, não corresponderá afinal àquela vitalidade a reencontrar e a inventar, a nova sensibilidade que expressa o ascendente [ascent] dos instintos de vida sobre [a] agressividade e [a] culpa, sem a qual a instauração de algo de realmente novo não pode ter lugar.
É preciso, portanto, perguntar se a forma de uma imaginação criadora e gratificante, em acto na transcendência dos padrões e das metas da sociedade instalada, não se encontra ela própria inscrita já, como exigência (uma refiguração do Sollen) e como negação, no leque de possíveis que essa sociedade imediatamente reprime, mas, do mesmo passo, comporta (e cuja contenção opera). O teor constitutivo de tudo aquilo que de pronto aparece, a um olhar afeiçoado pelo, e afeito ao, dominante, como utopia, e o seu potencial efectivo de transformação, dependem, em larga medida, da sua inscrição real nesse horizonte de possibilidades: A noção de forma estética como a Forma de uma sociedade livre significaria, de facto, inverter [reversing] o desenvolvimento do socialismo de científico a utópico, a menos que possamos apontar para certas tendências na infraestrutura da sociedade industrial avançada que podem dar a esta noção um conteúdo realista [a realistic contente]. Isto é, no fundo, o que está em causa, na perspectiva de Marcuse, é o apuramento de uma teoria crítica da sociedade industrial avançada que a considere na sua própria estrutura, na literalidade dos seus factos mas também na historicidade dos seus factores, sem perder de vista a possibilidade de uma sua transcendência, que a falaciosa concreção do empirismo posi­tivista, implantado nas consciências e enformante dos comportamentos generalizados, bloqueia, deturpa e priva dos vectores que além dela são susceptíveis de conduzir, nos termos de padrões mais exigentes, enriquecidos e possíveis, de humanidade». In José Barata Moura, Artur Matos e Mário Lages, Centro de Estudos dos Povos e Culturas de Expressão Portuguesa, Povos e Culturas n.º 12, Reflexos do Maio de ’68 na Sociedade Portuguesa (CEPCEP), Universidade Católica Portuguesa, Lisboa, 2008, ISSN 0873-5921.

Cortesia de CEPCEP/JDACT