sábado, 12 de abril de 2014

O Comércio Negreiro. Escravos e Traficantes no império português. Séculos XV a XIX Arlindo M. Caldeira. «Se o suspeito morria, era considerado culpado e eram postos à venda todos os que pertenciam à sua casa: não só os seus escravos mas também as mulheres, os filhos e, por vezes, outros parentes»

Cortesia de joaochichorro (atávicos), jdact

Tráfico e Tráficos. Os navios negreiros não param de passar
«(…) Em relação às guerras, se muitas eram conflitos entre Estados, outras eram guerras internas, entre diferentes linhagens, nomeadamente para resolver problemas de sucessão, como aconteceu com frequência no reino do Congo. Regiões houve onde, por ambos os motivos, a instabilidade era quase permanente. Apesar de alguns autores considerarem que não é possível estabelecer uma relação directa entre a conflitualidade político-militar e o tráfico de escravos, é difícil não admitir que ele teve um efeito catalisador nessa instabilidade e parece seguro que, pelo menos, uma parte dos conflitos teve como objectivo principal a obtenção de escravos para venda ao exterior. E não foi com certeza inocentemente que, em alguns desses confrontos, os europeus apoiaram uma das partes com armamento e, mais raramente, com homens. Por vezes, mesmo sem ser em situação de guerra, grupos organizados promoviam incursões de surpresa em territórios próximos para raptar homens e mulheres, numa punção permanente sobre os vizinhos mais fracos de quem não receavam represálias. No final do século XVI, André Álvares Almada dizia que os mandingas do rio Gâmbia vendiam muitos escravos, uns obtidos em guerras e juízos mas muitos outros em furtos, e, uma dúzia de anos depois, o padre Baltasar Barreira referia os assaltos que os manes da Serra Leoa faziam aos povos vizinhos. Entretanto, na Guiné, os bijagós, hábeis marinheiros, realizavam as suas incursões por mar, para obterem escravos que depois vendiam aos portugueses.
Uma outra fonte fundamental para a produção de escravos tinha a ver com a punição de crimes, quer se tratasse de verdadeiros culpados quer de outros a quem eram imputados delitos com pouco fundamento. Parece evidente que foi o incremento da escravatura para o mercado que fez crescer exponencialmente esta forma de administrar a justiça e de reinterpretar arbitrariamente normas do direito consuetudinário. Os missionários jesuítas que, no século XVII, entraram na terra firme de Guiné, assinalaram, por exemplo, a generalização da prática de ordálias, com os reis locais a recorrer com frequência à prova da água vermelha quando pretendiam destruir algum fidalgo poderoso do seu reino. Na prova da água vermelha, o acusado de homicídio ou de outro crime era obrigado a beber uma determinada quantidade de um líquido tóxico, preparado a partir das cascas de cor avermelhada de uma árvore, mais ou menos diluído conforme o fim que se pretendia, à partida, obter. Se o suspeito morria, era considerado culpado e eram postos à venda todos os que pertenciam à sua casa: não só os seus escravos mas também as mulheres, os filhos e, por vezes, outros parentes.
Aliás, a venda como escravo tornou-se a pena corrente para a maioria dos crimes (roubo, feitiçaria, adultério com as esposas do rei, falta de pagamento de dívidas...), sendo o castigo alargado a toda a família do condenado quando as infracções eram consideradas graves. Nalguns Estados, a apresentação de uma denúncia podia ser suficiente para que as autoridades prendessem e vendessem o denunciado. Dessa forma, em certas zonas de África, a repressão judicial, facilitada pelo carácter autocrático das chefias políticas, era uma das principais ou mesmo, segundo alguns autores, a principal fonte de obtenção de escravos. Fosse qual fosse a modalidade de escravização, muitos milhares de homens e mulheres eram todos os anos encaminhados para o litoral e aí vendidos aos capitães e mestres dos navios negreiros. Esta sangria permanente não pôde deixar de provocar uma quebra demográfica que só não se tornou mais catastrófica devido a uma natalidade elevada e ao sistema de poligenia que permitia dispensar da procriação uma percentagem razoável dos jovens do sexo masculino. Entretanto, as camadas dirigentes africanas mostraram-se capazes de controlar e administrar as alterações introduzidas pelo comércio a longa distância. Os bens que os europeus podiam fornecer em quantidade e com regularidade tinham um importante valor social, destinando-os as chefias africanas não apenas ao consumo próprio mas também ao reforço do seu poder através de dádivas e oferendas aos seus dependentes mais directos». In Arlindo Manuel Caldeira, Escravos e Traficantes no império português, O Comércio Negreiro no Atlântico durante os séculos XV a XIX, A Esfera dos Livros, Lisboa, 2013, ISBN 978-989-626-478-9.

Cortesia Esfera dos Livros/JDACT