segunda-feira, 28 de abril de 2014

Lionor. Lionor. A Paixão da Memória. Seomara Veiga Ferreira. «… desde a juventude que não me vi velha, a face rasgada por sulcos, pálida, sem vida, macerada como a de um pergaminho reutilizado, a face desesperada da morte, a distante, sempre igual e triste, das monjas qualquer que seja a sua idade»

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«Vinde, frei Juan, sentai-vos. Se tiverdes tempo, porque eu o tenho todo, assim Deus o quis, vamos ter uma longa noite. Agradeço-vos por terdes aceitado estar aqui comigo, com a última rainha de Portugal, a mãe da rainha de Castela. Olhai este fim de tarde, todo luz, todo oiro, da cor dos frutos maduros, esta Primavera que começa a cortar a secura fria do Inverno que este ano, não foi tão agreste como o do ano passado. Pelos muros desta pequena cela de monja, já escurecida pelo fumo das velas de profundas vigílias, a água punha pérolas azuladas translúcidas, às vezes nacaradas e opalescentes, quando o Sol poente as tocava no seu bailado final, leve e terno, como uma despedida apaixonada, que caíam, perto da janela, no mosaico do chão. Lembravam-me as pedras-da-Lua com que ornamentavam o ouro dos anéis. Essa pedra de Junho que, antes, pertenceu à deusa Juno, foi uma das minhas preferidas, em tempos. Diziam que nos trazia a sorte... Pois, frei Juan de Aranda, acercai-vos da luz que nos resta, antes que aquela monja que vos fez entrar venha acender esse grosso círio e espevitar o pavio da candeia. Aproveitai e usufruí desta calma que tem sido a única companhia de meus dias. Minto. A memória também sulcou a meu lado, como uma irmã caridosa, a sua presença apaziguadora e firme. Falemos então da memória.
Eu que já tive tudo, agora nem posso dizer que esta pequena cela de monja me pertence. Apenas preencho parte do seu reduzido espaço enquanto meu genro, o frágil, pequenino, achacoso e pálido rei de Castela o desejar. Não é a minha casa. Deixei de ter casa e aqui, eu que sempre detestei a cidade de Lisboa pela crueza injusta com que me tratou, recordo-a com saudade, e aos seus Paços, que frequentei, onde vivi, amei, e decidi algumas coisas do meu destino. Embora me sentisse melhor em Alenquer, em Évora, em Coimbra, em Santarém, aqui nem sempre, recordo Lisboa, os Paços a par de São Martinho onde pela primeira vez falei com Fernando. Por lá ficou certamente algum resquício da minha antiga presença, do meu sentir, dos meus sonhos porque as casas contêm algo da nossa alma, do nosso cheiro, das nossas virtudes e defeitos, porque pertencemos a elas, nos refugiamos dentro das suas paredes, no abrigo de seus braços maternais.
Não vou chegar a velha e sinto-me feliz por isso. Os velhos, geralmente, tornam-se egoístas, daquela espécie de egoísmo que é maleita, insensíveis, como se a sua alma, ao longo do caminho que os anos traçaram, tivesse perdido a qualidade divina, a sua origem celeste. Não são todos, perdoai-me, frei Juan, vós que já sois avançado em idade!, mas prometi a mim própria ser sincera e honesta, no entanto a grande parte deles é assim. Sei que não vou chegar a velha. Vede como eu estou, débil, esgotada, perdido o fogo do meu olhar que tantos homens admiraram. Ontem, descobri três cabelos brancos na minha fronte, como se tivessem, de repente, nascido durante a noite. Sei que não vou chegar a velha e agora que também percorri um caminho endurecido por escolhos e vicissitudes, por ódios terríveis e mesquinharias, sinto-me feliz e liberta por poder olhá-lo de frente, sem subterfúgios, na posse integral das minhas faculdades, imensamente consciente do que resta do meu destino à face de Deus e dos homens.
Não vos espanteis, meu bom amigo. Ao longo destes anos ouvistes-me em confissão. Conheceis perfeitamente o retrato secreto da minha alma de penitente, mas existem verdades tão escondidas que só em certos momentos da nossa vida as podemos traduzir  por palavras que toda a gente usa. Falei-vos da velhice. Como já percebestes ela não me atemoriza como a outras pessoas, sobretudo belas mulheres como eu fui, que vivem o suplício do envelhecimento como o do horror da peste maligna. Não. Confesso-vos, frei Juan, desde a juventude que não me vi velha, a face rasgada por sulcos, pálida, sem vida, macerada como a de um pergaminho reutilizado, a face desesperada da morte, a distante, sempre igual e triste, das monjas qualquer que seja a sua idade. Isso talvez porque a minha mãe morreu muito jovem, como o meu pai, assassinado pelos esbirros de Pedro, o Cruel, de Castela, em tempos de meu sogro, e algumas pessoas mais da minha família. Vi a velhice ao longe como uma noite, escura, é certo, uma terra de medos secretos, onde ondulavam as copas das árvores da floresta varridas pelo vento». In Seomara da Veiga Ferreira, Leonor Teles, ou o Canto da Salamandra, 1998, Editorial Presença, Lisboa, 1999, ISBN 942-23-2347-4.

Cortesia de Presença/JDACT