sábado, 5 de abril de 2014

Descobrimentos e Renascimentos. Formas de Ser e de Pensar nos séculos XV e XVI. Luís Barreto. «… Mateus Pisano em 1460: … “era ele já homem feito e de letras nada tinha ainda aprendido; mas ardia em tal desejo de saber, que em breve veio a ser um bom gramático, notável astrólogo e grande cronista”»

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A Dialéctica das Antropologias. Gomes Eanes de Zurara e o nascimento do discurso historiográfico de transição
«O conjunto das unidades discursivas de Gomes Eanes de Zurara forma um lugar cultural de extrema complexidade no outono da medievalidade portuguesa. A Crónica da Guiné é, sem dúvida, uma obra de dominante escrita medieval, mas é também, e ao mesmo tempo, um campo teórico onde uma dominada forma nova de escrever e pensar a História flui subterraneamente por entre os tradicionais enunciados. Lugar do paradoxo onde se conjugam alguns dos primeiros enunciados renascentistas da Cultura portuguesa com toda uma forma e limite tradicional de pensar a realidade natural e social. o discurso historiográfico de Zurara marca em Portugal o nascimento da transição lenta/gradativa e jamais linear, da historiografia medieval para a historiografia renascentista. Transição que vai desde os meados do seculo XV até às décadas de 1520 / 1530, altura em que Lopes de Castanheda e João de Barros começam a escrever os seus renascentistas discursos. Transição que vai de Zurara a Duarte Galvão (1445-1517), passando por Rui de Pina (1460?-1522) e Garcia de Resende (1470-1536), transição que corresponde no seu todo, à historiografia do primeiro andamento do Renascimento português, isto é, ao período em que as categorias do ser e pensar herdado da medievalidade são ainda, não apenas dominantes, mas mesmo determinantes em toda a lógica e ordem do discurso. Transição gradativa entre o outono da medievalidade e o nascimento do Renascimento português que levará Pedro de Mariz, em 1594, nos seus Diálogos de Vária História a chamar cronista a Rui de Pina e historiador a João de Barros, mostrando a diferença que une / separa ao mesmo tempo estes dois momentos.

Sujeito e Unidade Discursiva
Zurara (1410?-1474) nasceu no Ribatejo e viveu desde muito cedo na Corte em estreita relação com o centro do poder político estatal de Quatrocentos. No reinado de Duarte I exerceu funções administrativas numa secretaria ou arquivo régio. Com Afonso V inicia a sua carreira historiográfica ao ser nomeado cronista em substituição de Fernão Lopes, no ano de 1448. O quadro administrativo-político agora em funções predominantemente intelectuais vai subindo na hierarquia social e ao longo de 1451 / 1452 torna-se cavaleiro da Casa Real, comendador da Ordem de Cristo e encarregado da livraria régia. A partir de 6 de Junho de 1454, acumula um novo cargo intelectual-burocrático, o de guarda-mor da Torre do Tombo, que lhe duplica o confortável rendimento anual, então de 12 000 réis. As suas obrigações de intelectual orgânico do poder político estatal não lhe impedem actividades privadas como a de procurador do Mosteiro de Almoster e a de cronista de feitos privados da mais alta nobreza que o levam a Marrocos entre 1467 e Agosto de 1468 em missão de recolha documental.
Estas breves notas biográficas sobre Zurara servem-nos para o situarmos como tipologia intelectual. Estamos frente a um quadro administrativo estatal que se intelectualiza cada vez mais, vindo a restringir as actividades mais burocráticas em virtude do seu estatuto de historiador. Tal evolução de quadro mais prático a teórico, de escriturário a escritor, está bem documentada nas palavras de mestre Mateus Pisano em 1460: … era ele já homem feito e de letras nada tinha ainda aprendido; mas ardia em tal desejo de saber, que em breve veio a ser um bom gramático, notável astrólogo e grande cronista. O conjunto das unidades discursivas de Zurara distribui-se por quatro crónicas. A primeira é a Crónica da Tomada de Ceuta por El-Rei D. João I, concluída em Silves a 25 de Março de 1450, e que foi deixada em adiantado estado por Fernão Lopes e apenas retomada por Zurara ao longo de 1449 e 1450. Por volta de 1453-1454, começou a Crónica da Guiné, que só acabaria cerca de 1464. Em 1458 inicia a Crónica de D. Pedro de Meneses, terminada em 1463. Em 1464 começa a Crónica de D. Duarte de Meneses, que acaba nos finais de 1468 ou inícios de 1469. A Crónica de Guiné é, certamente, o escrito de Zurara que maiores problemas eruditos levanta. O manuscrito mais antigo, de finais do século XV inícios do XVI, foi revelado por Ferdinand Denis em 1893 e editado em Paris / 1841 pelo visconde de Santarém com o título de Crónica do Descobrimento e Conquista da Guiné»

In Luís Filipe Barreto, Descobrimentos e Renascimentos, Formas de Ser e de Pensar nos séculos XV e XVI, Temas Portugueses, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa, 1983.

Cortesia de INCM/JDACT