sábado, 12 de abril de 2014

Da Aporia à Cisão Interpretação do Opus Postumum Kantiano. Fragoso Fernandes. «… como podem as coisas ser-nos dadas senão pela maneira como nos afectam, e, por outro, como se explica a correspondência que têm as representações inteligíveis com coisas para cuja existência estas representações em nada contribuíram?»

Cortesia de wikipedia

A Dedução Transcendental de 1781. Dedução A
«O vector normalmente omitido no exame e na exegese da Crítica da Razão Pura não só se desenvolveu paralelamente à elaboração da Filosofia Crítica como se foi gradualmente diferenciando da exposição ortodoxa. A Dedução Transcendental das Categorias constitui o ponto fulcral onde se encontram explicitados os motivos que marcam o início da vertente heterodoxa do kantismo. Enquadrando a Dedução Transcendental da edição A no seu contexto próprio, isto é, na Analítica Transcendental, compreendemos sem dificuldades a articulação desta última secção da Teoria Transcendental dos Elementos com a Estética Transcendental. Toda a apresentação preliminar da lógica Transcendental que Kant intitulou Ideia duma lógica transcendental, estabelece os parâmetros em que se movem a Estética e a Analítica Transcendentais. Resumindo este segmento da Crítica da Razão Pura, fica-se com uma noção inequívoca quanto à autonomia duma faculdade chamada Entendimento que é inteiramente distinta duma outra chamada Sensibilidade. Esta prevalência do Entendimento refere-se tanto à sua origem como à sua aplicação. A conclusão segue-se, inevitável; a experiência só é possível pela acção do Entendimento, estando a multiplicidade sensível inteiramente submetida a esta faculdade. Mas como exibir desde logo a dupla elaboração duma problemática que nos mereceu simultaneamente a designação de heterodoxa e ortodoxa? Recuemos um pouco no tempo. Se bem que na carta a Markus Herz de 21 de Fevereiro de 1772 o filósofo não tivesse ainda extraído as consequências que o conduziriam à instauração da Filosofia Transcendental, o facto é que já na célebre missiva se encontram reunidas todas as condições que tornaram possível a posterior edificação do sistema.
As reflexões que constituem o conteúdo da carta convergem para a pergunta que o filósofo considera justamente encerrar o mistério da metafísica: … sobre que fundamento se apoia a relação com o objecto do que designamos em nós por representação? Há que colocar ab initio duas hipóteses, diz Kant; ou o sujeito é a causa da representação do objecto ou este é a causa das representações do sujeito. Mas, continuamos a ler, se a representação sensível representa as coisas como elas aparecem e a representação inteligível as coisas como elas são, então pergunta-se: … como podem as coisas ser-nos dadas senão pela maneira como nos afectam, e, por outro, como se explica a correspondência que têm as representações inteligíveis com coisas para cuja existência estas representações em nada contribuíram? São ainda os ecos do estudo de 1770 que ressoam nesta carta escrita dois anos mais tarde. Mas convém sublinhar, enquanto Kant não apresentar, nove anos depois, a solução do problema das relações da sensibilidade e do entendimento com o seu objecto, alguns pontos mais significativos deste momento em que se esboça um gradiente que acabará por estruturar o espaço da problemática de 1772. Por uma questão de precaução, que trará os seus frutos, repare-se que o Idealismo Transcendental é uma opção perante duas possibilidades que o autor da Crítica da Razão Pura, com a sua proverbial honestidade intelectual, coloca bem visíveis e lado a lado. Trata-se em primeiro lugar de compreender que a solução circunscreve a pergunta referida na carta a uma relação imanente entre os conteúdos da consciência e um objecto que se revela de igual modo estritamente imanente. Mas o que é fundamental e não deve esquecer-se é que a questão que surgiu primitivamente a Kant é a da relação entre um objecto em si, independente e exterior à consciência e os conteúdos da consciência que representam essa realidade em si.
Mas em nenhum segmento da 1.ª Crítica se pode observar melhor a evolução incipiente da heterodoxia kantiana do que naquela secção dos postulados do pensamento empírico que Kant chamou Refutação do idealismo. Os comentadores idealistas que sublinham a ortodoxia kantiana, como é o caso de Vleeschauwer, procuram minimizar esta subsecção da Analítica dos princípios, afirmando que a sua interpolação no texto quebra não só a ordem expositiva da própria Crítica da Razão Pura como a própria coerência conceptual dessa secção. A circunstancialidade e o tom polémico da Refutação mais não seriam que o resultado das críticas aceradas de Garve e especialmente de Feder. No estudo, não só se apresenta a Refutação do idealismo, de 1787 como significativamente inserida no contexto do ideário kantiano como também se põe em evidência o papel central requerido por aquela secção para uma avaliação final do Idealismo Transcendental kantiano. Não deixa de ser surpreendente a forma como um comentador da estatura de Vleeschauwer procura fazer da Refutação do idealismo da edição B um caso especial da 1.ª Refutação de 1781, isto é, do Quarto Paralogismo, quando é, de facto, de dois argumentos inteiramente distintos que se trata. No Quarto Paralogismo, a existência dos objectos exteriores é inteiramente restrita à sua aparência, e Kant conclui que, com efeito, ninguém pode sentir fora de si, mas somente em si mesmo, e, por conseguinte, toda a consciência de nós mesmos não nos fornece nada a não ser apenas as nossas próprias determinações». In António Fragoso Fernandes, Da Aporia à Cisão, Interpretação do Opus Postumum Kantiano, Estudos Gerais, Série Universitária, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa, 2006, ISBN 972-27-1471-6.

Cortesia de INMC/JDACT