quinta-feira, 3 de abril de 2014

Carta a D. Luís sobre as Vantagens de ser Assassinado. Fialho de Almeida. «Vinha adiante um monte de figuras, que me disseram ser os guarda-roupas, os moços de câmara, particulares e reposteiros, com brandões que derretiam de lado, ao revolutear dos fogachos…»

Cortesia de wikipedia

O seu enterro
«(…) Aos conselhos de um grande homem d'Estado que o adorava, deveu ele o levantar o respeito de si próprio à altura de uma força inexpugnável, e o desprezo pelos outros à categoria dum lema governativo, iniludível, o todo involucrado em tais formulas d'afectuosidade e deferência, que mesmo nas suas crises violentas de carácter, jamais alguém viu um tic que atraiçoar pudesse os exteriores da mais correcta impersonalidade. Poucos monarcas haverão seguido mais ao rigor as praxesconstitucionais, que fazem do rei um ídolo de barro, omnipotente e inútil, sagrado e subalterno, investido de poderes platónicos, quase sem responsabilidade nem exercício, assinando de cruz, discursando d'ouvido, e fazendo por toda a parte a caricatura dum Deus contemporâneo, dum Deus de Roma, que fala aos pecadores pela boca dos seus padres, e nem sequer é responsável pelas calamidades que eles acarretam.
Sabendo o preço de todos aqueles que o cercavam, e adivinhando pelos sarilhos jornalísticos ou parlamentares dos que ainda vinham de longe, aproximadamente o que esses lhe viriam a custar, era exímio em receber-lhes os botes impassível, té ao momento em que o inimigo se lhe tornasse perigoso ou necessário, e urgisse, para montá-lo manso, cingir-lhe ao dorso uma vistosa albarda de ministro. Das três geringonças políticas sobre que assenta a constituição do Estado, a representação popular, a coroa e a câmara alta, todas ele pesou na sua clara sagacidade d'alentejano e d'alemão, loiro e sabido.
Posto o seu conhecimento da subserviência e da torpeza dos homens, posto o inabalável conceito em que se tinha, a sua conduta de rei salta de chofre: fazer das duas câmaras rodados para o trono, atrelar-lhe os ministros como bridões esparvonados, e guiar ele mesmo o carro sozinho, mas sans en avoir l'air, e conservando aos cavalos a ilusão de serem eles os cocheiros.
Segunda-feira 21 d'Outubro, pelas 10 horas da noite, foi o cadáver do rei trazido da alcova mortuária de Cascais para o grande coche que devia arrastá-lo até aos Jerónimos. Estava uma noite escura e tormentosa, com ventania e chuviscos; por forma que a abalada da cidadela, à luz dos brandões e dos archotes, foi uma destas grandes pinturas a dois tons, negro e vermelho, magníficas para gravar no espírito a nota fúnebre, e para trazer a emotividade pública à suasão óptica duma espécie de catástrofe irreparável. Saído da câmara ardente, o cortejo desceu as escadas que vêm da bateria ao pátio da cidadela, desenrolando-se lentamente, em silhouettestenebrosas, sobre o fundo da muralha lambida pelo sanguino de chama dos luzeiros.
Vinha adiante um monte de figuras, que me disseram ser os guarda-roupas, os moços de câmara, particulares e reposteiros, com brandões que derretiam de lado, ao revolutear dos fogachos torcidos pelas inquietações da ventania; e logo após o grande vulto da tumba coberta de veludo roçagante, e trazida em padiola por archeiros fardados de vermelho e d'amarelo. Aquele enorme caixão vinha sem pressa, e d'onde eu estava, parecia que alguém por detrás se lhe tinha agarrado à cabeceira, como quem se abraça, desesperado, a uma jangada que vem de rustilhão, por uma cheia. Era a rainha.
Grande e de negro, com uma cauda de lástima e um grande véu de musa de tragédia, essa mulher tinha no porte a formidável rigidez com que a dor cadaveriza o orgulho humano, e esse prestígio hierárquico, amplíssimo, grandioso, que mesmo aos cépticos se impõe como um retoque de Deus, sagrando as castas predestinadas a eternamente intervir nos destinos dos homens e das nações. Ao lado o infante, o filho amado, o querido Sabóia, o mais que todo real e galhardo gentil-homem da família, esse de roda a cuja impetuosa mocidade, franqueza rude e limpidez serena de carácter, todas as simpatias acordam, como em presença duma figura deserdada por engano cronológico, da forma política de ser rei... E vêm depois ministros, açafatas, padres, gentis-homens; aquilo tudo espalha-se com atitudes fantasmáticas no pátio, num circuito piedoso que é todo um drama de tinta da China e vermelhão, à luz das tochas, quando devagar um coche avança, os padres se achegam murmurando as encomendações do ritual, e o ataúde entra por fim dentro do carro, no meio da estrupida da cavalaria que se põe a caminho, pela estrada de Lisboa, da soturnidade da noite que amadorna as alturas, da impaciência do vento que faz bruxulear as chamas dos tocheiros, e da melancolia do oceano, fosforescente, ali perto, a cantochar o salmo das grandes agonias apaziguadas enfim no seio da morte!» In Fialho de Almeida, Carta a D. Luís sobre as Vantagens de ser Assassinado, Assírio Alvim, Lisboa, 2010, ISBN 978-972-37-1441-8.

Cortesia de Assírio Alvim/JDACT