terça-feira, 22 de abril de 2014

Amor e Sexualidade no Ocidente. Pequena História. Georges Duby. «Uma das partes desta monumental compilação (que, no seu estado original e enquanto permaneceu incólume perante os danos causados pelo tempo, compreendia cerca de 110 tábuas, o que representava entre dez e quinze mil presságios e oráculos»

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Tudo começa na Babilónia
Preces para o êxito no amor
«(…) Eis dois desses documentos, o primeiro, colorido por manipulações confortantes, o segundo, constituído por clamores bem eloquentes!
Prece: Toma-me! Sem medo! Entesa sem temor! Por inspiração de Ishtar [a deusa do Amor], de Shamash, de Ea e de Asalluhi! [Os deuses que vulgarmente presidiam aos ritos sacramentais]. Esta fórmula não é minha: é da própria Ishtar, deusa do Amor [forma vulgarmente utilizada para sublinhar a origem sobrenatural e, portanto, a infalibilidade do rito.] Recolheremos alguns pêlos de um bode com cio, um pouco do seu esperma, alguns pêlos de um carneiro com cio.... Amassaremos tudo para aplicar no dorso do amante, depois de se ter recitado a prece sete vezes.
Prece: Excita-te! Excita-te! Entesa-te! Entesa-te! Excita-te como um veado! Entesa-te como um touro selvagem! [...] Faz amor comigo seis vezes, como um corço! Sete vezes como um veado! Doze vezes como um macho de perdiz! [todos estes animais eram famosos pelo seu vigor sexual]. Faz amor comigo porque sou jovem! Faz amor comigo porque sou ardente! Faz amor comigo como um corço! E eu, protegida pelo deus Ningirsu [que nesta matéria parece ter aqui uma autoridade que não é atestada em nenhum outro lado], eu apaziguar-te-ei!.

As loucuras amorosas
Uma vez que estamos na alcova, demoremo-nos um instante, pois é isso que nos proporciona um documento assaz inesperado e sugestivo. É o capítulo de um volumoso tratado divinatório. Verdadeiros entusiastas pela adivinhação deductiva, os antigos Mesopotâmios tinham por princípio considerar como um presságio quase tudo o que no mundo em redor, na natureza e na vida do homem, podia ser visto como menos usual, fortuito ou singular. Segundo as normas da hermenêutica que tinham lucubrado, empenhavam-se em deduzir o futuro feliz ou infeliz a que estavam expostos todos os implicados em tais conjecturas. Uma das muitas obras a que se tinham consagrado reunia muitos acasos da vida quotidiana: todos os acontecimentos imprevistos, os encontros pouco comuns com que um indivíduo podia ter de se confrontar nos diversos sectores da sua existência. Uma das partes desta monumental compilação (que, no seu estado original e enquanto permaneceu incólume perante os danos causados pelo tempo, compreendia cerca de 110 tábuas, o que representava entre dez e quinze mil presságios e oráculos) era dedicada às relações sexuais e conjugais. Todo o início da tábua 104, que nos chegou quase completa, seguindo a 103, de que restam apenas palavras soltas, fala precisamente das relações amorosas. Não trata, evidentemente, dos seus aspectos rotineiros, banais e constantes, por exemplo, não faz a mínima referência às posições universalmente adoptadas e às mais correntes, simplesmente as fantasias mais incríveis ou então os acidentes que podiam sobrevir nos momentos de loucura.
Acontecia, por exemplo, que, para estes momentos era escolhido um enquadramento excêntrico, em lugar de se manter o seu espaço de eleição, o quarto de dormir. Podia meter-se-nos na cabeça fazer amor no terraço do telhado; no limiar da porta; no meio de um campo ou de um jardim; num lugar deserto ou numa estrada sem saída; ou ainda em plena rua, quer seja com uma mulher qualquer, à qual nos atiramos, ou com uma prostituta; podia-se, assim, sozinho ou com a sua parceira, ir com este intuito à taberna, que desempenhava ao mesmo tempo o papel de botequim e de bordel... Diversas posições pouco habituais podiam ser adoptadas: de pé; sobre uma cadeira; de través na cama; tomando a parceira por trás ou mesmo sodomizando-a; ou então cavalgado por ela, isto é, preferindo representar o papel feminino...
Existiam também sonhos eróticos: o homem podia voltar a excitar-se mesmo após ter feito amor e podia até experimentar uma forte ejaculação; ou então, na cama com a sua mulher, imaginava que ela mantinha por ele um desejo incessante (literalmente: fixar o olhar no seu membro). O tratado de oniromância, de que encontrámos igualmente alguns excertos, completa este quadro: o indivíduo sonha que está a fazer amor com a própria deusa Ishtar ou com uma sacerdotisa (o que era interdito); com a rainha do seu país; com a filha do rei; com a sua irmã… É de assinalar que não se tenha encontrado, nestes documentos ou noutros, a mínima alusão à prática do sexo oral, embora nos possamos interrogar se a relação ou a cunilíngua, bem conhecidas na época em muitos outros lugares como, por exemplo, no Egipto, não eram objecto de uma aversão particular ou de uma interdição. Em contrapartida, a sodomia era comum, tanto com homens como com mulheres: podemos confirmá-lo em várias gravuras e existem textos que nos falam da sodomia sem quaisquer subtilezas. Para além de ser o assunto da passagem mais importante da tábua 104 do tratado, é referenciada pelo menos quatro vezes no que resta da tábua 103. Podemos mesmo concluir que esta prática era utilizada como contraceptivo: num tratado de extispicina, ou arte de adivinhar, pelo exame das entranhas dos animais sacrificados, é mencionada uma sacerdotisa que se deixava sodomizar para evitar a gravidez. Parece mesmo que não eram conhecidos outros meios contraceptivos, as preces para não conceber, tal como as para conceber, para procriar ou para impedir a procriação, para [favorecer] o amor ou impedi-lo eram uma consequência da terapia mágica ou exorcista». In Georges Duby, Jean Bottéro, Amour et Sexualité on Occident, Société d’Éditions Scientifiques, Paris, 1991, Amor e Sexualidade no Ocidente, Terramar, Lisboa, 1998, ISBN 972-710-053-8.

Cortesia de Terramar/JDACT