quarta-feira, 23 de abril de 2014

A Princesa de Babilónia. Biblioteca de Babel. Voltaire. «Mas o que havia de mais admirável em Babilónia, o que eclipsava tudo o mais, era a filha única do rei, chamada ‘Formosante’. Foi pelos seus retratos e pelas suas estátuas que, no decorrer dos séculos…»

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A Princesa de Babilónia
«O velho Belo, rei da Babilónia, imaginava-se o primeiro homem de toda a terra, porque todos os seus cortesãos lho diziam e porque os seus históricos grafos lho provavam. Se alguma coisa podia desculpar nele este ridículo, era com efeito os seus predecessores terem edificado Babilónia mais de trinta mil anos antes dele, e ele tê-la embelezado. Sabe-se que o seu palácio e o seu parque, situados a algumas parasangas de Babilónia, se estendiam entre o Eufrates e o Tigre, que banhavam aquelas margens encantadas. A sua vasta casa, de três mil passos de fachada, erguia-se até às nuvens. A plataforma era rodeada por uma balaustrada de mármore de cinquenta pés de altura, a qual sustentava as estátuas colossais de todos os reis e de todos os grandes homens do império. Essa plataforma, composta de duas ordens de tijolos cobertos por uma espessa superfície de chumbo de um extremo ao outro, era carregada com doze pés de terra, e nesta haviam crescido florestas de oliveiras, de laranjeiras, de limoeiros, de palmeiras, de coqueiros, de cravoárias, de caneleiras, que formavam alamedas impenetráveis aos raios do Sol.
Às águas do Eufrates, elevadas por meio de bombas em cem colunas ocas, subiam a esses jardins, onde enchiam vastos tanques de mármore e, descendo em seguida por outros canais, iam formar o parque de cascatas de seis mil pés de comprimento e cem mil repuxos, cuja altura dificilmente se podia medir; voltavam em seguida ao Eufrates, donde tinham partido. Os jardins de Semíramis, que seriam a admiração da Ásia muitos séculos depois, não eram senão uma fraca imitação destas antigas maravilhas porque, no tempo de Semíramis, principiava já tudo a degenerar nos homens e nas mulheres. Mas o que havia de mais admirável em Babilónia, o que eclipsava tudo o mais, era a filha única do rei, chamada Formosante. Foi pelos seus retratos e pelas suas estátuas que, no decorrer dos séculos, Praxísteles veio a esculpir a sua Afrodite e aquela a quem se chamou a Vénus das nádegas formosas. Que diferença, ó céus!, do original para as cópias; por isso, também o rei Belo tinha mais orgulho na sua filha do que no seu reino. Tinha esta dezoito anos; precisava de um marido digno dela, mas onde ir encontrá-lo? Um oráculo antigo havia ordenado que Formosante não poderia pertencer senão àquele que distendesse o arco de Nembrod. Este Nembrod, o forte caçador perante o Senhor, tinha deixado um arco de sete pés babilónicos de altura, de madeira de ébano mais dura do que o ferro do monte Cáucaso, apurado nas forjas de Derbent e nenhum mortal, depois de Nembrod, pudera ainda armar esse arco maravilhoso.
Estava dito também que o braço capaz de retesar esse arco mataria o leão mais terrível e mais perigoso que soltassem no circo de Babilónia. E ainda não era tudo; o armador do arco, o vencedor do leão, devia prostrar por terra todos os seus rivais; mas devia, sobretudo, ter muito espírito, ser o mais belo e magnífico de todos os homens, o mais virtuoso, e possuir o objecto mais raro que houvesse no universo inteiro. Apresentaram-se três reis, que se atreveram a disputar Formosante: o faraó do Egipto, o xá das Índias e o grande cão dos Citas. Belo designou o dia e o lugar do combate, na extremidade do seu parque, no vasto espaço limitado pelas águas do Eufrates e do Tigre reunidas. Ergueu-se em torno da liça um anfiteatro de mármore, que podia conter quinhentos mil espectadores. Em frente do anfiteatro estava o trono do rei, que devia aparecer com Formosante, acompanhada por toda a corte; e à direita e à esquerda, entre o trono e o anfiteatro, havia outros tronos e outros assentos para os três reis e para todos os outros soberanos que tivessem curiosidade de vir assistir a esta augusta cerimónia. O primeiro que chegou foi o rei do Egipto, montado no boi Ápis e trazendo na mão o sinistro de Ísis. Seguiam-no dois mil padres vestidos com túnicas de linho mais branco do que a neve, dois mil eunucos, dois mil magos e dois mil guerreiros». In Voltaire, La Princesse de Babylone, A Princesa de Babilónia, Biblioteca de Babel, Editora Vega, Lisboa, 1989.

Cortesia de Vega/JDACT